Em 1980, a adolescente Bebel Gilberto iniciava a trajetória artística, ao interpretar, em duo, com o pai, João Gilberto, o clássico Chega de saudade, num especial de tevê. Quarenta anos depois, a cantora lança Agora, álbum gravado em Nova York. Naquela cidade onde nasceu e viveu as três últimas décadas, tornou-se referência da música popular brasileira e construiu uma carreira musical reverberada pelo mundo.
Há dois anos, com o propósito de ficar próxima dos pais, Bebel se fixou no Rio de Janeiro, embora continuasse a viajar para o exterior, a fim de cumprir compromissos agendados. Aqui, a princípio, ela passou a frequentar o noticiário por conta de questões jurídicas, relacionadas ao espólio do pai, morto em junho de 2019 — seis meses depois do falecimento da mãe, Miúcha.
Com Agora — sexto da discografia — produzido pelo pianista norte-americano Thomas Bartllet, parceiro em 10 das 11 faixas do repertório, Bebel volta a ser destaque pelo trabalho que realiza. Além de coautora de Na cara, a artista e amiga Mart’nália participa da interpretação do samba, registrado também em clipe.
Por causa da pandemia de covid-19, Bebel ficou impedida de programar shows para divulgar o disco, do selo belga Pias Recordings. Em entrevista ao Correio, ela falou sobre a carreira musical; o novo álbum; a parceria com Mart’nália; a lembrança dos pais; a disputa pelo espólio de João Gilberto; e também do amigo e parceiro Cazuza, o poeta que o rock brasileiro perdeu há 30 anos.
Entrevista// Bebel Gilberto
Que avaliação faz de sua trajetória artística?
Eu olho para trás e sinto muito orgulho de tudo o que construí até aqui. Nesses 20 anos, acho que consegui criar uma marca, uma identidade forte na forma de cantar, nos arranjos, nas influências. Algumas pessoas chamam de bossa nova eletrônica, mas eu tento sempre subverter os rótulos. Os dois discos se encontram de alguma forma, sim. Eu e Thomas falávamos sobre isso em estúdio, virou até assunto na terapia dele. Tivemos um encontro criativo muito fluido, prazeroso. Em Agora, toda a produção foi apoiada no amor e confiança que recebi de Thomas. Ele me deixou ser eu mesma e o resultado é um pouco mais louco, mais maduro e extremamente sincero.
As canções registradas neste novo projeto foram compostas em que período?
As músicas foram compostas entre 2017 e 2019. Tudo começou depois de uma viagem que fiz sozinha para Puglia, na Itália. Consegui organizar todas as inspirações, as muitas melodias que surgiram, mas ainda não estava pensando em um disco. Quando voltei, instintivamente, liguei para o Thomas sem nenhuma pretensão. Na época, ele havia produzido Norah Jones, Florence + The Machine, Sufjan Stevens, entre outros, e estava com um estúdio muito bacana em Nova York. Mostrei para eles algumas coisas e as ideias foram simplesmente fluindo. Começamos a compor imediatamente sem pressão, sem prazo. Quando vimos, havíamos feito 17 músicas. O disco estava pronto!
Que relação artística tem com Mart’nália, sua parceira em Na cara, que participa da gravação?
Mart’nália é uma grande amiga, uma pessoa hipercriativa que adoro ter por perto, mas nunca havíamos feito música juntas. Em uma das vezes que ela foi a Nova York, tomamos umas cervejas, ficamos bem animadas e mostrei a ela a melodia de Na cara. Ela adorou a ideia de escrever a letra, mas voltou para o Brasil e nunca mais tocou no assunto. Quando estava em estúdio com o Agora, reforcei o convite e ela mandou os primeiros versos em menos de 24 horas por WhatsApp. Tive o prazer enorme de tê-la em estúdio para gravar a música comigo, em Nova York, e ainda gravamos o clipe há algumas semanas, aqui no Brasil.
A escolha desta música, que virou clipe, tem a ver com fato de a letra fazer referência aos tempos sombrios de agora?
Não foi uma escolha proposital. Mas os versos de Na cara realmente refletem muito os dias atuais. Para mim, a música tem um sentido. Para a Mart’nália, tem outro. É uma música divertida e sincera que se adequa a muitas situações que vemos por aí.
Você morou em Nova York durante 30 anos e se tornou referência de música brasileira naquela cidade e nos Estados Unidos. O que a levou a voltar ao Rio de Janeiro?
Voltei para ficar perto dos meus pais um pouco antes da morte de mamãe. Foi quando fechei meu apartamento em Nova York e passei a adotar o Rio de Janeiro como base. A verdade é que vivo na estrada com a mala na mão. Logo antes da pandemia, no início do ano, estava na Tailândia, fui ao Japão em turnê e, depois, segui para Los Angeles fazer uma apresentação e gravar o clipe de Deixa. Na volta para o Brasil, ainda tirei uns dias de férias em Trancoso, na casa de uma amiga, antes de chegar ao Rio. A ideia era ficar somente 15 dias para, então, começar a trabalhar na turnê do disco na Europa, que estava toda desenhada. Quando a pandemia chegou, os planos mudaram. Acho que nunca fiquei tanto tempo em um mesmo lugar! Mas é reconfortante passar esse período difícil no Brasil, perto da minha família, falando português e divulgando o disco com calma.
O que guarda na memória sobre Miúcha e João Gilberto?
De mamãe, o alto-astral, o carisma e a teatralidade no palco, que sempre foi uma referência para mim. De papai, a disciplina, a dedicação ao violão e o aprendizado eterno sobre música.
Como administra a relação com seus irmãos, que também disputam o espólio de João?
Na época em que pedi a curatela de papai, meu objetivo era organizar as finanças, a casa, o médico... Cuidar dele. Depois que ele se foi, preferi não ser a inventariante no processo do espólio. Fiquei satisfeita com a indicação da advogada Silvia Gandelman. Ela tem muita experiência e acho que fará um bom trabalho. Todos nós podemos ajudar doutora Silvia a administrar o espólio dele da melhor forma. Quero que a música de papai seja ouvida e estudada pelas próximas gerações.
Há 30 anos, a música brasileira perdeu Cazuza, seu amigo e parceiro. Para você, como ele estaria vendo o Brasil atualmente?
Cazuza estaria mais afiado do que nunca nas ácidas críticas à hipocrisia, caretice e falso moralismo. Estaria transformando toda essa bagunça em poesia, com certeza.
Agora
Álbum de Bebel Gilberto. Lançamento do selo belga Pias Recordings no formato físico e nas plataformas digitais, 11 faixas.
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Crítica
Livre demais
O disco Agora é a calmaria depois da tempestade de ações judiciais em torno inventário do pai, João Gilberto. Com 11 faixas, Bebel Gilberto procura apresentar um clima de normalidade — “agora eu posso ouvir, posso, então, cantar”, deixa explícita a faixa que dá título à gravação. Só que a calmaria virou paradeira.
O disco é, na verdade, uma coleção de climas, mais do que canções. São melodias construídas sobre bases harmônicas de monótona inspiração lounge, próprias para receber intervenções nas pistas de dança, já que, dificilmente, sobrevivem da maneira em que são apresentadas.
Bebel Gilberto tenta mostrar uma nova face, talvez buscando uma maturidade relaxada que — exagerada — acaba se revelando preguiçosa. A troca de impressões com Mart’Nália deixa mais evidente a fragilidade da proposta nas músicas Na Cara e Raio, que mereciam leituras mais solares, longe da introspecção carregada dos teclados
Acordes aleatórios, ritmos livres, frases soltas e sem rima formam uma sucessão de massas sonoras disformes, como num infinito ad libs — quando o intérprete altera o andamento musical a seu bel prazer. Com parcimônia, tem seu encanto; aqui, não é o caso. A liberdade excessiva atrapalhou.