
Por Marta Nehring*
Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarices
No solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
Os versos são da canção composta pela dupla Aldir Blanc e João Bosco, imortalizada na voz de Elis Regina em álbum lançado em 1979. O Bêbado e a Equilibrista tornou-se um hino da luta contra a ditadura militar. As Marias e Clarices do verso são uma referência a Maria Aparecida, filha do metalúrgico Manoel Fiel Filho, e a Clarice Herzog, viúva do jornalista Vladimir Herzog, ambos assassinados sob tortura nos porões do DOI-Codi, em São Paulo, anos antes — ainda que seus atestados de óbito tenham registrado suicídio.
O Oscar conquistado por Ainda Estou Aqui, filme adaptado do livro de Marcelo Rubens Paiva, trouxe à tona essa dor que o Brasil insiste em ignorar. O que pouca gente sabe, e que o belo filme de Walter Salles revela ao grande público, é que a luta dos familiares dos mortos e desaparecidos políticos não terminou. Ela resiste nos rostos das Marias, Clarices, Eunices, filhos e netos das vítimas diretas da repressão.
É a esse grupo que pertenço. Minha mãe, também Maria — Maria Lygia Quartim de Moraes —, é viúva de Norberto Nehring, igualmente suicidado pela ditadura militar.
Meu pai, professor da USP e militante da resistência, foi assassinado em abril de 1970 ao retornar clandestinamente do exílio, arriscando a própria vida por um Brasil livre.
Minha mãe, então com apenas 27 anos, e eu, uma criança de seis, só soubemos de sua morte meses depois, a quilômetros de distância. Ela entendeu de imediato a brutalidade da perda; eu, sem compreender totalmente, apenas senti que jamais o veria novamente.
De 1970 até 1997, quando a farsa do suicídio foi finalmente reconhecida oficialmente, minha mãe, Maria Lygia, enfrentou não apenas a brutalidade da mentira imposta pelo regime, mas também a dor irreversível de saber que jamais voltaria a ver o pai de sua filha. Viúva e sob a mira da repressão, passou longos anos no exílio, entre Cuba, Chile e França, sem nunca renunciar à luta política.
No exílio, minha mãe percorreu diferentes países, unindo-se a outros latino-americanos que resistiam à repressão. No Chile, viveu a esperança do governo de Allende até vê-la ser esmagada por um golpe que espelhou o terror brasileiro. Em Paris, encontrou refúgio, mas não descanso. Onde estivesse, carregava a ferida da perda e o compromisso de manter viva a memória de quem tombou pela liberdade.
O Brasil que minha mãe reencontrou não reconhecia suas feridas. Os responsáveis pela morte de meu pai seguiam impunes, e o silêncio oficial tentava apagar suas vítimas. Mas ela não se calou. Fez da sua dor uma trincheira: tornou-se professora, pesquisadora de direitos humanos, voz ativa na luta pela memória e justiça. Se a ditadura tentou enterrar Norberto no anonimato, ela garantiu que seu nome ecoasse nos tribunais da história e nos corações de quem não aceita o esquecimento como sentença.
Quantas histórias como a da minha Maria — Maria Lygia — ainda esperam ser contadas? O Oscar conquistado por Ainda Estou Aqui não apaga a impunidade que assombra o Brasil, mas obriga o país a olhar para o que tentou esquecer.
Se o mundo reconhece essa dor, o Brasil não pode mais ignorá-la. A memória é a última fronteira contra a injustiça.
Norberto, Manoel, Vladimir, Rubens e tantos outros torturados, mortos e desaparecidos pela ditadura militar ainda fazem chorar nossa Pátria Mãe Gentil. Suas histórias ecoam nas Marias, Clarices e Eunices que resistem, na dor que se recusa a ser silenciada. Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inútil. Porque nunca deixaram de estar. Nunca deixaram de lutar por memória, verdade e justiça.
Roteirista e diretora, filha de Norberto Nehring*