Entrevista — Carlos Vieira Filho, membro da comissão que elaborou anteprojeto do novo Código Civil

Código Civil completa 23 anos em transformação

Advogado que atuou na comissão que elaborou anteprojeto do novo Código Civil comenta avanços na legislação e na sociedade nas últimas duas décadas

Carlos Vieira Filho -  (crédito: Divulgação)
Carlos Vieira Filho - (crédito: Divulgação)

Base das relações privadas, o Código Civil Brasileiro acaba de completar 23 anos e um substituto está em discussão no Congresso Nacional. O anterior, de 1916, levou mais de um século para ser atualizado. Mas, com a velocidade das transformações sociais, duas décadas deixaram o conjunto de normas que regem as vidas dos cidadãos brasileiros defasado.

Mestre e graduado em direito pelo Ceub, especialista em processo civil pelo IDP, o advogado Carlos Vieira Filho integrou a comissão, presidida pelo vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Luiz Felipe Salomão, que elaborou o anteprojeto do novo Código Civil. Ele atuou especialmente no direito das garantias. 

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Na avaliação de Vieira, muitas áreas merecem atenção, como o direito digital, direito de família, direito sucessório e as regras para segurança jurídica de questões empresariais. O texto está há nove meses no Senado e desperta muitos debates, segundo Vieira, especialmente relacionados a questões ligadas a animais e relações familiares. Mas a discussão, na avaliação do especialista, é fundamental.

O Código Civil foi sancionado há exatos 23 anos. A sociedade brasileira mudou muito nesse período. Onde, na sua avaliação, é preciso mais avançar?

Um dos campos que exige avanço é o direito digital. O Código de 2002 não prevê dispositivos específicos para regulamentar relações jurídicas no ambiente virtual, como contratos digitais, proteção de dados e responsabilidade por danos causados por tecnologias emergentes, incluindo a inteligência artificial. Além disso, o direito de família precisa se alinhar às mudanças nos arranjos familiares contemporâneos. O direito sucessório também merece atenção, especialmente para modernizar a sucessão de bens digitais e tratar com mais clareza as questões envolvendo testamentos e direitos do cônjuge. Por fim, o fortalecimento de disposições contratuais e empresariais, considerando o impacto da economia digital e das relações virtuais, entre outros aspectos igualmente relevantes que merecem atenção.

O anteprojeto estabelece o fim das menções a "homem e mulher", nas referências a casal ou família, para contemplar outros arranjos familiares, como os homoafetivos. O STF já havia reconhecido as uniões homoafetivas. O que muda na prática com essa alteração?

Representa um avanço normativo que alinha o Código Civil ao entendimento já consolidado pelo STF sobre a igualdade entre uniões heteroafetivas e homoafetivas. O reconhecimento das uniões homoafetivas pelo STF, em 2011, garantiu sua proteção jurídica, mas a ausência de previsão expressa no Código Civil ainda gera inseguranças e lacunas interpretativas. Na prática, isso confere maior clareza às normas relativas a direitos e deveres de casais e famílias, incluindo questões patrimoniais, sucessórias e de filiação, além de promover a igualdade formal no tratamento das diversas formas de família, sem necessidade de complementação judicial.

A revisão trata também do direito dos animais, que passam a ser considerados seres que podem ter proteção jurídica própria. Como essa mudança afeta a proteção aos animais?

A revisão do Código Civil, ao reconhecer os animais como "seres vivos sencientes" com proteção jurídica própria, representa uma mudança paradigmática no tratamento jurídico desses seres. Atualmente, os animais são equiparados a bens móveis (semoventes), sendo protegidos apenas de forma indireta, enquanto a revisão os retira dessa categoria, reconhecendo sua condição especial e sua capacidade de sentir. Essa alteração confere maior respaldo legal para a criação de normas específicas que protejam os animais contra maus-tratos, exploração inadequada e abandono. Ela também reforça a possibilidade de responsabilização mais efetiva das práticas abusivas, além de influenciar na interpretação judicial de casos que envolvam os direitos dos animais, destacando seu valor intrínseco, independentemente de sua utilidade para os humanos, além de reconhecer o direito dos ex-cônjuges e ex-conviventes de compartilhar a companhia dos animais de estimação e arcar conjuntamente com as despesas necessárias para sua manutenção.

Quais os avanços relacionados à tecnologia e ao novo mundo digital que vivemos com uso da inteligência artificial?

Entre os principais avanços, o anteprojeto prevê o direito à informação e transparência em interações com sistemas de inteligência artificial, além da responsabilidade civil nas ocasiões em que os referidos sistemas afetarem direitos ou causarem prejuízos aos usuários. Essa medida promove maior clareza sobre quem deve responder pelos impactos negativos da referida tecnologia. A regulamentação da IA no anteprojeto estabelece bases para evitar abusos, como a manipulação de dados ou violações de privacidade, ao mesmo tempo em que fomenta a confiança no uso dessas tecnologias. Também são abordadas questões relacionadas ao uso de algoritmos discriminatórios e ao tratamento de dados sensíveis, reforçando a necessidade de práticas justas e conforme a proteção de direitos fundamentais. O texto também trata da validade jurídica de contratos e documentos digitais, consolidando sua legitimidade desde que sua autenticidade e integridade sejam garantidas por meios confiáveis.

No direito de herança, há propostas de mudanças. O que se propõe principalmente?

No direito sucessório, uma das propostas de alteração mais marcantes é a exclusão do cônjuge sobrevivente da condição de herdeiro necessário. Pelo texto atual do Código Civil de 2002, o cônjuge concorre com descendentes e ascendentes na partilha dos bens. A proposta do anteprojeto, no entanto, retira o cônjuge dessa posição, atribuindo-lhe a terceira colocação na ordem de vocação hereditária. Com isso, o cônjuge passaria a ter direitos patrimoniais apenas na ausência de descendentes e ascendentes, ou, em casos excepcionais, poderia solicitar usufruto de bens para garantir sua subsistência, desde que comprovada a insuficiência de recursos.Outra inovação significativa é a introdução do conceito de herança digital. O anteprojeto reconhece bens digitais de valor econômico, como arquivos armazenados em nuvem, contas em redes sociais e outros ativos intangíveis, como parte do espólio a ser transmitido aos herdeiros, regulamentando um patrimônio que não existia à época da formulação do Código de 2002. Além disso, o anteprojeto enfatiza a importância de assegurar maior autonomia ao testador, permitindo maior liberdade na disposição de seus bens, desde que respeitada a proteção mínima de herdeiros necessários, como os descendentes. Busca-se, com isso, equilibrar a vontade do falecido com a proteção de direitos patrimoniais fundamentais, promovendo um sistema sucessório mais adaptável e dinâmico.

E nas questões de família?

Entre as inovações propostas está a ampliação do conceito de família, que passa a reconhecer formalmente não apenas as uniões conjugais tradicionais, mas também as famílias monoparentais e homoafetivas. Esse reconhecimento se estende à importância dos laços socioafetivos, permitindo a formalização de múltiplos vínculos parentais. Além disso, o anteprojeto simplifica processos relacionados ao casamento e ao divórcio. A proposta facilita a alteração do regime de bens diretamente em cartório, sem necessidade de homologação judicial, e permite a realização do divórcio de forma unilateral e extrajudicial, acelerando procedimentos que antes dependiam do Judiciário.Pelo texto, ao promover o registro de nascimento, a mãe poderá indicar o suposto pai, que será notificado pelo oficial do Registro Civil para reconhecer a paternidade ou realizar o exame de DNA. Caso o indicado se negue a reconhecer o vínculo ou se recuse a realizar o exame, o oficial terá a prerrogativa de incluir o nome do indicado no registro de nascimento, cabendo a ele buscar judicialmente a exclusão, caso queira contestar o vínculo.

Há avanços nos direitos do consumidor?

Destaca-se, por exemplo, a ampliação das disposições sobre negócios jurídicos e contratos digitais, assegurando validade e segurança para transações realizadas em meio eletrônico, desde que observadas a integridade e autenticidade dos documentos.Além disso, a previsão de maior proteção à boa-fé objetiva e à vulnerabilidade em negociações (como nos artigos que tratam de lesão e estado de perigo) reflete princípios já consolidados no Código de Defesa do Consumidor (CDC), mas agora reforçados no Código Civil.

E na segurança jurídica para realização de negócios?

O anteprojeto aprofunda a autonomia privada nos contratos paritários, alinhando-se às diretrizes da Lei de Liberdade Econômica. Estabelece a presunção de paridade e simetria nos contratos civis e empresariais, salvo prova em contrário, e reforça os princípios de intervenção mínima e excepcionalidade da revisão contratual.Também é enfatizada a função social dos contratos, e reforçada a aplicação do princípio da boa-fé objetiva para todas as fases do processo obrigacional, incluindo as tratativas iniciais e a fase pós-contratual.Por fim, introduz-se um Capítulo específico sobre a cessão da posição contratual, permitindo que qualquer das partes ceda sua posição, desde que haja concordância do outro contratante. Essa medida visa conferir maior flexibilidade e dinamismo às relações contratuais.

Houve debates e audiências suficientes para que a comissão de juristas chegasse a um texto que atenda a todas as questões?

Sim, o processo de elaboração do anteprojeto foi caracterizado por debates e audiências amplamente conduzidos pela Comissão de Juristas, com o objetivo de assegurar que o texto contemplasse as principais questões sociais, econômicas e jurídicas contemporâneas. A Comissão reuniu especialistas de diversas áreas do direito, incluindo ministros, professores e advogados, e realizou consultas públicas, colhendo contribuições de diversos segmentos da sociedade.

Atuou diretamente em uma área mais específica?

Cuidei especialmente do direito das garantias, procurando retomar a centralidade do Código Civil quanto ao tema, pois a matéria foi tratada ao longo do tempo por legislações especiais. Buscamos priorizar a segurança jurídica e a proteção das partes que estejam em situação mais desfavorecida, com enfoque na atualização do arcabouço jurídico para regulamentar as relações comerciais já existentes, como a penhora de estoques e o penhor rotativo, por exemplo. Trouxemos as inovações do marco geral das garantias para o anteprojeto do novo Código Civil com a permissão de alienações fiduciárias sucessivas, o que permitirá a maior circulação de crédito no mercado. Setores como o do agronegócio, sistema financeiro e a indústria da construção civil serão positivamente impactados na hipótese de aprovação dessas sugestões por parte do congresso nacional.

O anteprojeto está no Senado desde abril. Acha que há demora na aprovação ou o debate político ainda é necessário?

A tramitação do anteprojeto no Senado desde abril reflete a complexidade de um texto que busca revisar um Código Civil tão abrangente e estruturante como o brasileiro. Embora a revisão já tenha passado por um processo técnico robusto, é natural que o debate político leve tempo, considerando a necessidade de alinhamento entre diversas visões e interesses representados no Congresso Nacional. O equilíbrio entre agilidade e qualidade no processo legislativo é fundamental para que o novo texto seja tecnicamente sólido, socialmente justo e politicamente viável.

Os direitos das mulheres são contemplados?

Sim, o anteprojeto contempla os direitos das mulheres de maneira ampla e integrada, alinhando-se às mudanças sociais e jurídicas que promovem a igualdade de gênero. Além disso, o texto preserva a proteção patrimonial e familiar em cenários de dissolução de vínculos, como divórcio e união estável, e facilita o registro e a segurança jurídica em casos de filiação socioafetiva, beneficiando mulheres que exercem papel central na organização familiar. A modernização de dispositivos sobre violência patrimonial e discriminação implícita, ainda que não mencionada explicitamente, também demonstra uma evolução no tratamento das vulnerabilidades que afetam mulheres em diferentes contextos sociais e jurídicos.

Quais temas, na sua avaliação, são mais polêmicos e devem esbarrar em questões ideológicas no Congresso?

Um dos principais é a inclusão explícita da pluralidade de arranjos familiares. Essa alteração consolida no texto legal o entendimento já reconhecido pelo STF, mas pode enfrentar resistência de grupos que defendem visões mais tradicionais de família. Também a inclusão de dispositivos que reforçam os direitos da personalidade. Outro ponto sensível é o reconhecimento dos animais como seres sencientes, com proteção jurídica própria. Embora seja uma inovação que atende às demandas contemporâneas por maior cuidado e ética em relação aos animais, a proposta pode encontrar oposição de setores econômicos ligados à agropecuária e práticas culturais que envolvem o uso de animais, que enxergam riscos de restrições mais severas. Há previsão do direito de recusa terapêutica, que regulamenta a possibilidade de pessoas rejeitarem tratamentos médicos, mesmo quando há risco de morte ou agravamento da saúde. Essa previsão pode despertar debates éticos, desafiando valores culturais e religiosos de diferentes grupos.

O primeiro Código era de 1916 e esteve em vigência durante quase um século. A atualização ocorre 23 anos depois. Com as mudanças da sociedade cada vez mais ágeis, acredita que serão necessárias novas atualizações em breve?

Sim, é altamente provável que novas atualizações ao Código Civil sejam necessárias em um futuro próximo. A velocidade com que a sociedade evolui, impulsionada por avanços tecnológicos, mudanças culturais e transformações econômicas, exige que o ordenamento jurídico acompanhe essas dinâmicas para permanecer relevante e eficaz. O Código de 1916, apesar de sua longevidade, enfrentou críticas por se tornar desatualizado frente às mudanças sociais ocorridas ao longo do século XX, o que resultou na edição do Código de 2002. Agora, 23 anos após a sua promulgação, o Código Civil já enfrenta demandas por revisões, como evidenciado pelo anteprojeto.

 

  • Carlos Vieira Filho, integrante da comissão que elaborou o anteprojeto do novo Código Civil
    Carlos Vieira Filho, integrante da comissão que elaborou o anteprojeto do novo Código Civil Foto: Divulgação
  • Carlos Vieira Filho, integrante da comissão que elaborou o anteprojeto do novo Código Civil
    Carlos Vieira Filho, integrante da comissão que elaborou o anteprojeto do novo Código Civil Foto: Divulgação
  • Carlos Vieira Filho, integrante da comissão que elaborou o anteprojeto do novo Código Civil
    Carlos Vieira Filho, integrante da comissão que elaborou o anteprojeto do novo Código Civil Foto: Divulgação
Ana Maria Campos
postado em 16/01/2025 03:00 / atualizado em 16/01/2025 00:00
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