Durante muito tempo, o foro por prerrogativa de função era considerado uma regalia, tanto que ficou conhecido como foro privilegiado. A tramitação das denúncias era mais lenta e o recebimento exige a avaliação de um colegiado. Políticos envolvidos em crimes buscavam um mandato para garantir a proteção.
Hoje a visão é oposta. Deputados e senadores temem ser julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Tanto que há um movimento para a aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), para reformar o sistema de foro no país.
A matéria tem o apoio de vários parlamentares para quem o tema se trata de uma defesa das prerrogativas parlamentares. "Nos últimos anos, houve uma mudança na quantidade e qualidade dessas ações no STF graças às inúmeras operações de combate à corrupção", avalia o advogado Melilo Dinis. "Vemos uma maior leniência das instâncias inferiores do que no Supremo. Os ministros têm julgado com rigor e não se preocupam com a repercussão na opinião pública", acredita.
Um dos benefícios que esses congressistas buscam é o duplo grau de jurisdição para que possam recorrer de decisões. No caso das denúncias envolvendo os atos antidemocráticos de 8 de janeiro, por exemplo, o grande temor dos réus é uma condenação a penas altas, já que não há nenhuma instância superior para reavaliar o caso.
Em algumas situações, o foro especial também foi considerado um meio para postergar a conclusão de processos. O ex-governador e ex-deputado Ronaldo Cunha Lima morreu em 2012 sem nunca ter sido julgado por uma tentativa de homicídio ocorrida quase 20 anos antes.
Em 2007, na véspera de seu julgamento no STF, o político, então deputado federal, renunciou ao mandato, alegando que gostaria de ser tratado como qualquer cidadão.
Com a renúncia, Cunha Lima perdeu o foro privilegiado no Supremo e o processo foi enviado à Justiça comum. O relator da ação penal, ministro Joaquim Barbosa (hoje já aposentado), reagiu. "Ele tem direito de renunciar, mas é evidente a segunda intenção. O que ele fez foi impedir que a Justiça funcionasse", afirmou.
O mesmo ocorreu em 2014 com o então deputado federal Eduardo Azeredo (PSDB-MG) que renunciou ao mandato quando o processo relacionado ao chamado "mensalão mineiro" estava pronto para ser julgado pelo STF, já com alegações finais do Ministério Público, defendendo a condenação. Na justiça comum, Azeredo foi condenado em primeira e segunda instâncias e chegou a ser preso.
O criminalista Cleber Lopes explica que as manobras de renúncia para escapar do STF causaram um evidente incômodo entre os ministros. "Assim, fixou-se o entendimento de que a renúncia só provocava a cessação da competência se ocorresse até o fim da instrução", acrescenta. A jurisprudência foi alterada em 2010, com a renúncia do deputado Natan Donadon (PMDB-RO).
O parlamentar acabou sendo condenado pelo STF a 13 anos e quatro meses de prisão, em regime inicialmente fechado, por peculato e formação de quadrilha, em esquema de desvios de recursos na Assembleia Legislativa de Rondônia.
Essa era a regra até 2018. "Em 2018, o STF fixou o entendimento de que o foro só existe se o fato tiver sido praticado no exercício do mandato, em razão do mandato, mantendo-se a regra em relação à renúncia", explica Cleber Lopes. Esse entendimento foi defendido à época pelo ministro Luis Roberto Barroso, hoje presidente do STF.
Atualmente a posição de Barroso é minoria na Corte. "Agora estão pretendendo fixar a tese de que se o fato tiver relação com o mandato não importa a renúncia ou fim do mandato, pois o processo segue no Supremo", acredita Lopes.
O STF está a um voto para mudar as regras para o foro por prerrogativa de função. A competência para analisar denúncias contra ex-deputados e ex-senadores passa a ser dos ministros do STF. A regra atinge também ex-presidentes, como Jair Bolsonaro, alvo de várias investigações. Esse modelo chegou a ser aventado em 2002, em projeto de lei de autoria do deputado Bonifácio Andrada (PSDB-MG), que morreu em janeiro de 2021.
A proposta era de que o foro privilegiado seria mantido para autoridades mesmo depois de deixarem suas funções. Considerada uma vantagem indevida, que outros cidadãos não tinham, o projeto não prosperou no Congresso até pela reação da opinião pública. Agora há uma maioria sendo formada no STF para que passe a valer.
Pela Constituição, o STF possui a competência para julgar crimes envolvendo o presidente da República e vice, ministros de Estado, parlamentares federais, embaixadores e membros de tribunais superiores e do Tribunal de Contas da União (TCU).
O placar está em 5 X 0, com os votos dos ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin e Flávio Dino. O julgamento, em plenário virtual, será retomado na próxima semana e concluído em 19 de abril.
Barroso, que havia pedido vista, liberou o processo. Relator do caso, o ministro Gilmar Mendes defende que o foro para processamento e julgamento de um político permanece no STF se o crime tiver sido cometido durante o exercício da função. Assim, quando há renúncia, não reeleição ou cassação do mandato, o processo não muda de instância. É mantido no Supremo.
O caso em questão é um habeas corpus impetrado pelo senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), acusado de "rachadinha", por ser suspeito de exigir parte do salário de funcionários de seu gabinete, em 2013. O processo mudou de instância porque nesse meio tempo o político se elegeu vice-governador.
Neste caso, o senador pede para ser julgado pelo STF já que ele exerceu, sem interrupção, cargos com foro especial e, sobretudo, porque os crimes descritos na denúncia foram praticados durante o exercício do cargo público de deputado federal e em razão dele.
Em seu voto, Gilmar Mendes ressaltou: "A subsistência do foro especial, após a cessação das funções, também se justifica pelo enfoque da preservação da capacidade de decisão do titular das funções públicas. Se o propósito da prerrogativa é garantir a tranquilidade necessária para que o agente possa agir com brio e destemor, e tomar decisões, por vezes, impopulares, não convém que, ao se desligar do cargo, as ações penais contra ele passem a tramitar no órgão singular da Justiça local, e não mais no colegiado que, segundo o legislador, reúne mais condições de resistir a pressões indevidas".
Um dos que mais pode ser afetado pelas mudanças das regras é Bolsonaro. Não à toa aliados do ex-presidente defendem a aprovação da PEC que tiraria os processos de Bolsonaro das mãos do ministro Alexandre de Moraes.
Ao deixar de ser presidente, Bolsonaro perdeu o foro privilegiado. Os inquéritos envolvendo o ex-presidente só estão no STF porque há outros investigados que puxam o foro. Mas, se prevalecer o entendimento até agora defendido por cinco ministros, a competência para processar e julgar Bolsonaro por irregularidades cometidas na Presidência da República passa a ser inquestionavelmente do Supremo.