PERFIL

Cármen Lúcia, mulher de palavra

A ministra sofreu preconceitos de gênero e precisou superar obstáculos como a maioria das mulheres bem-sucedidas

 A ministra sofreu preconceitos de gênero e precisou superar obstáculos como a maioria das mulheres bem-sucedidas -  (crédito: kleber sales)
A ministra sofreu preconceitos de gênero e precisou superar obstáculos como a maioria das mulheres bem-sucedidas - (crédito: kleber sales)

Num momento em que se discute caminhos para o empoderamento feminino, a ministra Cármen Lúcia representa muito. É atualmente a única mulher no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Reina sozinha em meio a 10 homens de toga discutindo os mais importantes temas do país.

É um exemplo. A ministra sofreu preconceitos de gênero e precisou superar obstáculos como a maioria das mulheres bem-sucedidas. Mas chegou no topo da carreira. Na prova oral de um concurso, ouviu do examinador da banca que teria de demonstrar muito mais competência porque a preferência era pela contratação de um homem.

Em julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), sobre fraude em cotas de gênero, ela silenciou o plenário com uma espécie de desabafo: "Os senhores homens, pelo menos nesta bancada, tiveram facilidades que eu não tive e nem tenho. Isso não me desanima de ser juíza brasileira. Isso me faz mais comprometida e responsável com outras que eu não estou vendo. Não se preocupe, mulher só desanima quando não está disposta mesmo".

Estudiosa, é conhecida pelas frases marcantes. "Dizem que fomos silenciosas historicamente. Mentira. Fomos silenciadas, mas sempre continuamos falando, embora muitas vezes não sendo ouvidas", disse recentemente.

Quando passou pelo crivo dos senadores, para tomar posse como ministra, seu pronunciamento na sabatina da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) mostrou que Cármen Lúcia não chegaria ao STF para ser sombra. "Quando me encontrarem, nem morta ninguém vai me ver de braços cruzados, diante do que tem sido a minha luta para que a gente tenha um Brasil justo", afirmou. Foi a sabatina mais curta entre os ministros do STF: pouco mais de duas horas. O suficiente para ser aprovada por unanimidade.

Prestes a completar 70 anos — em 19 de abril — a mineira de Montes Claros já fez história no Judiciário. Foi a segunda mulher a chegar ao STF. Antes dela, apenas Ellen Gracie Northfleet, que permaneceu na corte por 11 anos, vestiu a toga de ministra da mais alta corte do país.

Nos quase 18 anos como magistrada, Carmen Lúcia participou de vários debates marcantes, sempre com posições firmes e muitas vezes com manifestações memoráveis. Um dos momentos mais contundentes foi a relatoria do processo sobre as biografias não autorizadas. A ministra votou a favor da liberdade de expressão. "Cala a boca já morreu. Quem disse foi a Constituição", enfatizou na ocasião.

Cármen Lúcia chegou ao STF em 2006, nomeada pelo presidente Lula na vaga do ministro Nelson Jobim. Seu padrinho foi o também mineiro Sepúlveda Pertence, advogado e amigo de Lula. Antes disso, ela foi procuradora do estado de Minas Gerais por 24 anos. Em 2001, exerceu a chefia do órgão como procuradora-geral no governo de Itamar Franco.

Graduada pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, obteve o título de Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais — UFMG.

Foi a primeira mulher a presidir o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Alcançou a presidência do STF em 2016 e chegou a assumir interinamente a Presidência da República.

Na interinidade no Palácio do Planalto, assinou decreto instituindo a data de 2 de abril como o Dia Nacional da Consciência Sobre Autismo. Esteve interinamente no exercício das funções da Presidência da República mais quatro vezes em 2018: em 18 de junho, em 17 e 18 de julho, entre 23 e 28 de julho e em 15 de agosto.

Workaholic, com apenas 40 Kg, Cármen Lúcia devora a leitura. Costuma trabalhar 18 horas por dia. Acorda bem cedo e mergulha no noticiário, livros e processos. Desde muito jovem disse a familiares que não se casaria. E foi o que ocorreu.

Entre os processos de repercussão, votou a favor da Lei da Ficha Limpa, da Lei Maria da Penha, da união homoafetiva e da interrupção da gravidez por decisão da mulher em caso de fetos anencéfalos. Também se posicionou favorável a pesquisas com células-tronco embrionárias.

No julgamento do mensalão, defendeu posições duras. Mas votou contra a condenação de José Dirceu na acusação de formação de quadrilha.

Na discussão sobre cumprimento da pena com condenação em segunda instância, votou a favor, ajudando a formar uma maioria que acabou provocando a decretação da prisão do presidente Lula.

Durante anos, a ministra Cármen Lúcia esteve ao lado de posições do Ministério Público Federal na Operação Lava-Jato. Mas teve voto decisivo para a anulação do processo envolvendo Lula, o que possibilitou que ele deixasse a prisão em Curitiba e voltasse à política.

Em 2015, uma frase sua repercutiu bastante. Ela disse: "O momento exige que os homens de bem tenham a ousadia dos canalhas".

Em entrevista ao Correio, Carmen Lúcia explicou que a frase não era sua, mas de Benjamin Disraeli, o escritor, filósofo e frasista que foi primeiro-ministro do Reino Unido, no século 19. "As pessoas de bem têm de reagir e agir no sentido de mudar a situação e não de abandonar as coisas como se não tivessem a ver com elas. Os assaltantes, traficantes, acabam tendo uma audácia muito maior porque sabem que as pessoas não vão reagir. Então, é preciso que quem seja de bem tenha a audácia para também reagir", afirmou na entrevista, concedida em 2015.

Apesar da dedicação ao trabalho, Cármen Lúcia delicia-se ao contar casos, tem senso de humor apurado, gosta de receber convidados e adora música. Um vídeo em que ela aparece cantando entusiasmada ao lado da sambista Alcione e da ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge viralizou. "Não deixe o samba morrer, não deixe o samba acabar…"

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postado em 04/04/2024 06:00 / atualizado em 04/04/2024 00:00
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