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Visão do Direito

A complicada relação entre inteligência artificial e propriedade intelectual

"A legislação vigente ainda não está preparada para lidar com a IA generativa"

Por Paulo Palhares* — O surgimento do DeepSeek, modelo de inteligência artificial chinês baseado em código aberto, lança um ataque frontal ao atual modelo de propriedade intelectual e desafia as estruturas regulatórias existentes. Se, por um lado, a IA aberta pode impulsionar a inovação e democratizar o acesso à tecnologia, por outro, também escancara as fragilidades dos sistemas jurídicos e econômicos que dependem da proteção da propriedade intelectual para manter seu equilíbrio. Vivemos um momento definidor, não apenas para a regulamentação da propriedade intelectual, mas para o próprio modelo de IA que prevalecerá.

A relação entre inteligência artificial e direitos autorais é complexa e paradoxal. Empresas como OpenAI e Meta (ex-Facebook) enfrentam processos judiciais movidos por jornais, escritores e outros titulares de direitos autorais, que reivindicam compensações pelo uso de seus conteúdos no treinamento de modelos de IA. A contradição fica evidente quando essas mesmas empresas defendem a flexibilização da propriedade intelectual para alimentar suas IAs, enquanto protegem rigidamente seus próprios códigos-fonte e modelos de negócio.

A legislação vigente ainda não está preparada para lidar com a IA generativa. No Brasil, a Lei de Direitos Autorais protege expressamente "criações do espírito humano", o que exclui, ao menos por ora, obras geradas exclusivamente por IA da proteção legal. Mas e quando há uma colaboração entre humano e máquina? Quem detém os direitos? Além disso, o uso massivo de dados protegidos para treinar essas IAs deveria ser considerado uma violação de direitos autorais?

Enquanto a IA levanta novos desafios jurídicos, ela também se tornou uma ferramenta essencial no combate à pirataria digital. Algoritmos avançados possibilitam o monitoramento e a detecção de plágio, o rastreamento de distribuidores ilegais e a identificação de padrões de comportamento criminoso no ambiente digital. Órgãos como a Ancine e a Anatel já utilizam tecnologias sofisticadas para monitorar e combater a pirataria on-line. Em uma ação recente, a Anatel desligou remotamente mais de dois milhões de dispositivos que violavam direitos autorais, demonstrando a eficácia dessas estratégias no enfrentamento da contrafação.

A pirataria digital continua sendo um dos maiores desafios para a proteção dos direitos autorais. No Brasil, medidas como a adesão à Convenção de Budapeste buscam fortalecer o combate aos crimes cibernéticos, harmonizando as legislações dos países-membros. Além disso, iniciativas interministeriais, envolvendo o Ministério do Trabalho e a Receita Federal, tentam não apenas coibir a pirataria, mas também reinserir trabalhadores da indústria da contrafação no mercado formal.

Entretanto, o jogo de gato e rato entre reguladores e infratores persiste. Falsificações cada vez mais sofisticadas dificultam a identificação de conteúdos ilegais, e novas estratégias surgem a cada dia para burlar as restrições impostas pelas autoridades. Nesse cenário, a inteligência artificial se apresenta como um ator central — tanto como ferramenta de proteção quanto como potencial ameaça ao atual modelo de direitos autorais.

O avanço da IA impõe a necessidade de adaptação das normas jurídicas. O DeepSeek pode ser um divisor de águas nesse debate, forçando uma reavaliação das políticas de propriedade intelectual. Se a tendência das IAs de código aberto se consolidar, podemos testemunhar uma transformação profunda nos modelos de negócio nos quais forem aplicadas. Por outro lado, se o modelo de IAs baseado em código fechado prevalecer, certamente haverá mudanças nas regras que hoje regulam a proteção de ativos intelectuais.

Além das discussões sobre direitos autorais e regulamentação, há também a questão econômica. Se modelos de IA forem treinados com conteúdos protegidos sem a devida compensação financeira aos criadores, a sustentabilidade das indústrias criativas pode ser comprometida. O risco de desvalorização do trabalho autoral é real e deve ser considerado na formulação de novas políticas públicas.

Diante desse cenário, o debate precisa avançar para garantir um equilíbrio entre liberdade, inovação e proteção da propriedade intelectual. Modelos mais transparentes e políticas de remuneração para titulares de direitos podem ser alternativas viáveis. Assim como o avanço tecnológico nunca foi contido, a regulamentação da IA precisa acompanhar sua evolução, garantindo que a criatividade humana continue sendo valorizada e respeitada.

A questão que se coloca é: em que medida o direito conseguirá acompanhar essa revolução tecnológica?

Advogado e cientista político, especialista em direito processual civil e mestre em direito da propriedade intelectual e concorrência*

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