Visão do Direito

Existe vida fora dos extremos: como manter a coerência no caso do dia 8/1

"Defender o devido processo legal é a melhor forma de garantir que os culpados sejam punidos pelos crimes que cometeram"

  Luiz Augusto Rutiz, criminalista -  (crédito:   Divulgação)
x
Luiz Augusto Rutiz, criminalista - (crédito: Divulgação)

Por Luiz Augusto Rutis* — A mídia tem dado grande destaque à sessão do STF que recebeu a denúncia oferecida contra o ex-presidente. Diante do que assistimos nos últimos dias, tenho a impressão de que vivemos em um looping no qual as maiores vítimas são o devido processo legal e a coerência.

Antes de entrar na dinâmica desse looping, preciso ser honesto com o leitor acerca de duas premissas. Primeiro, como cidadão, acredito que Bolsonaro tentou dar um golpe de Estado. Acredito que existem várias evidências nesse sentido e que ele só não conseguiu por circunstâncias alheias à sua vontade (felizmente). Segundo, como advogado, acredito que o processo no qual ele é acusado é marcado por uma série de nulidades que restringem o exercício constitucional de seu direito de defesa. Por incrível que pareça, é possível que esses dois aspectos coexistam. Certamente, eles coexistiram na Operação Lava- Jato.

Parafraseando um dos colegas que falou no STF, é terraplanismo argumentativo dizer que a Operação Lava-Jato não revelou dados concretos de uma corrupção endêmica no funcionamento da República. Do mesmo modo, ficou comprovado que vários dos métodos empregados pelos grandes atores da investigação eram ilegais. E aqui entra o looping.

Durante anos, quem criticava os métodos ilegais empregados na Lava-Jato era taxado de conivente com a corrupção. Agora, quem critica os excessos cometidos pelo STF é taxado de conivente com a extrema-direita.

Defender o devido processo legal é a melhor forma de garantir que os culpados sejam punidos pelos crimes que cometeram. Isso porque a Lava-Jato provou que, quando os ventos políticos mudam, o desrespeito às regras do jogo — ignorado durante anos — passa a servir de justificativa para um desmonte generalizado das conclusões jurídicas, em uma tentativa de reescrever a história.

Quem tem medo de que isso aconteça no caso do ex-presidente deveria ser o maior defensor de que, aos acusados de envolvimento nos atos do dia 8/1, sejam conferidas todas as garantias constitucionais. Do contrário, quando o vento mudar, pode-se querer reescrever a história novamente.

Se o devido processo legal está ferido, a coerência agoniza ao seu lado.

Quem criticava a Operação Lava-Jato deveria fazer o mesmo em relação a uma série de procedimentos adotados pelo STF ao tratar dos atos antidemocráticos, pois diversos aspectos aproximam a atuação dos julgadores de cada caso.

Em ambos, vimos uma atuação acusatória por parte de quem deveria julgar, bem como uma ampla concentração de diversos fatos em um único juiz. Além disso, as dificuldades de acesso às provas, que eram conhecidas em Curitiba, também marcam a condução no STF.

Então, por que não se ouvem as mesmas críticas, com o mesmo volume, e com a mesma veemência, vindas dos mesmos personagens? Porque, agora, ficamos assustados com o que vimos no dia 8/1 e com o que descobrimos ao longo da investigação. Eu sei que eu fiquei.

A questão é que, nessa hora, é preciso lembrar do que diz o Ministro Marco Aurélio: "existe um preço a ser pago por viver no Estado Democrático de Direito que é o respeito ao devido processo legal". Ou seja, não se pode flexibilizar as regras da vida democrática a pretexto de garantir a continuidade democrática. Discordar disso é ignorar dois pontos fundamentais.

Pau que bate em Chico bate em Francisco. Hoje, quem tem seu direito limitado é o inimigo; amanhã, pode ser o amigo. Está aí a Lava-Jato para provar esse argumento.

Além disso, o direito é um sistema. Flexibilizações de garantias legais para determinado grupo nunca se limitam a ele. Elas se expandem, atingem situações não previstas, e o que era excepcional torna-se regra.

Quem viu Lula sendo conduzido coercitivamente por Moro de forma ilegal não imagina a quantidade de juízes Brasil afora que se inspiraram no exemplo do atual senador.

Por tudo isso, acredito que o caminho seguro para a construção de uma sociedade mais democrática passa pelo pedágio obrigatório do respeito ao devido processo legal. Isso pode implicar retrocessos no caso contra Bolsonaro? Claro que sim.

Se esse for o caso, paciência: esse é um preço que estou disposto a pagar para viver em uma democracia.

Advogado criminalista*

Tags

Por Opinião
postado em 17/04/2025 03:30 / atualizado em 24/04/2025 16:53