Visão do Direito

STF e a prensa hidráulica dialética

"O malabarismo interpretativo das leis ou a "prensa hidráulica dialética" não coadunam com o Estado Democrático de Direito, geram insegurança jurídica, desacreditam a Suprema Corte e ofendem a separação dos Poderes"

 Bady Curi Neto, advogado fundador do escritório Bady Curi Advocacia Empresarial, ex-juiz do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (TRE-MG) e professor universitário

       -  (crédito: Divulgação)
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Bady Curi Neto, advogado fundador do escritório Bady Curi Advocacia Empresarial, ex-juiz do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (TRE-MG) e professor universitário - (crédito: Divulgação)

Por Bady Curi Neto* — O célebre jurista alemão Ihering, nos idos do século XIX, trouxe a teoria da prensa hidráulica dialética. Narrou o jurista que, em um sonho, foi levado a um paraíso especial dedicado aos teóricos do direito. Nesse local, encontravam-se a boa-fé, a má-fé, o direito à posse, a propriedade, entre outros meios lógicos e normas legais, para que os teóricos pudessem manipulá-los da forma que lhes aprouvesse.

Para tal, o local era dotado de uma prensa hidráulica dialética, por meio da qual qualquer norma poderia ser forjada com diversos entendimentos distintos, mesmo que diametralmente opostos. Como resultado, a norma passou a ser uma mera ficção jurídica, mutável conforme a interpretação de cada jurista, alterando totalmente seu sentido literal.

Hoje, para espanto de diversos juristas, a prensa hidráulica dialética passou a ser um instrumento utilizado por meio de narrativas e contorcionismos jurídicos de alguns julgadores da nossa Corte Maior, em um ativismo exacerbado, dando a impressão de que se tornou uma corte divorciada da legislação pátria, notadamente da Constituição, em defesa de ideologias políticas.

Apenas para relembrar um exemplo: quando o ex-presidente da República concedeu o indulto/graça ao ex-deputado federal Daniel Silveira (que se encontra preso até hoje), após esse ter sido condenado criminalmente por suas palavras e discursos, em vernáculo desrespeitoso e chulo, dirigidos aos ministros do STF, a Corte entendeu por anulá-lo, em um malabarismo interpretativo por desvio de finalidade.

Naquela ocasião, o ex-ministro Marco Aurélio de Mello, em entrevista à CNN Brasil, manifestou-se:

"Não vejo crime algum do presidente da República. Ele está exercendo o mandato e foi eleito pela maioria dos eleitores e definiu no campo estritamente político quanto à graça implementada relativamente ao deputado. Não há desvio de finalidade..."

"O normal seria a extinção do processo, como deveria ter sido extinto o processo-crime contra o deputado Daniel Silveira, aceitando-se a inviolabilidade quanto às palavras e opiniões."

Destaca-se que a própria PGR reconheceu a legalidade do indulto:

"O decreto presidencial é existente, válido e eficaz, sendo que o gozo dos benefícios da graça concedida está na pendência da devida decisão judicial que declare extinta a pena, nos termos do artigo 738 do CPP, artigo 192 da LEP e artigo 107, II, do CP, com retroatividade dos correlatos efeitos jurídicos à data de publicação do decreto presidencial."

No mesmo sentido, naquela ocasião, o renomado jurista Ives Gandra, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, afirmou:

"Ninguém pode contestar. Ele (o presidente) pode consultar outras pessoas para tomar a decisão, mas não é obrigado a consultar. É um poder absoluto que ele tem. Qualquer restrição que venha a ser dada ao direito de dar indulto é limitar o que a Constituição não limitou."

Agora, com os acontecimentos do fatídico 8 de Janeiro e os chamados "inquéritos do fim do mundo", a Corte Maior vem alargando sua competência jurisdicional para julgar cidadãos comuns, sem a prerrogativa de foro privilegiado, como se fosse uma estratégia política para, posteriormente, assumir a jurisdição e decidir o processo contra o ex-presidente da República.

Chama especial atenção que, em março de 2025, o Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão por maioria (7 votos a 4), decidiu ampliar o foro privilegiado para políticos investigados na Corte que já não ostentam a função exigida na Constituição Federal.

O ex-ministro Marco Aurélio, em entrevista à Jovem Pan, externou sua indignação com esse novo entendimento, contrário ao estabelecido na Constituição:

"Tivemos um alargamento da competência do Supremo. A competência do Supremo é em direito estrito, o que está na Constituição e nada mais. Está se julgando, por exemplo, os arruaceiros de 8 de Janeiro. E agora esses que estariam envolvidos em uma tentativa de golpe são cidadãos que não gozam, segundo a Constituição — e a Constituição se impõe a todos, inclusive, ao próprio Supremo —, da prerrogativa de serem julgados no Supremo."

"O problema do ex-presidente Jair Bolsonaro: indago onde foi julgado o atual presidente, na qualidade de ex-presidente, Lula da Silva? Na 13ª Vara Criminal de Curitiba. E, de repente, surgiu essa competência que discrepa da Constituição Federal — uma competência generalizada quanto a cidadãos comuns, que deixam de ter direito a recurso, pois serão julgados em martelada única pelo ministro."

A prensa hidráulica dialética, exercida pela Corte Suprema nessa interpretação forçada, afronta não só a competência jurisdicional determinada pela Constituição, como também fere de morte o princípio do duplo grau recursal, inserido no contexto internacional de proteção aos direitos humanos e expresso em tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

A preocupação com julgamentos de cunho político também foi externada pelo ex-ministro Marco Aurélio:

"Não vejo como transportar para o Supremo a política. Principalmente, uma política partidária, uma política governamental. A única política possível é aquela voltada a tornar prevalente a lei das leis, que é a Constituição Federal".

Ressaltou ainda: "Estou muito triste com o que vem acontecendo nos últimos tempos. Sinto saudades da Velha Guarda do Supremo em 1990."

Ao exercerem contorcionismos interpretativos das normas e princípios constitucionais, os ministros deixam, ao menos, a impressão de que seus julgamentos estão motivados por interesses políticos e ideológicos ou que se trata de perseguição judicial.

As críticas ao STF pelo ativismo judicial têm sido constantes. Em 10/12/2014, o senador Eduardo Girão pronunciou-se na tribuna do Senado:

"É isso que tem acontecido reiteradamente. O que mais os senhores precisam? Nos últimos anos, o que temos visto são alguns ministros do STF que, em vez de serem os guardiões da Constituição, da Carta Magna, são os primeiros a descumpri-la, fazendo verdadeiros malabarismos jurídicos para impor suas visões em assuntos de natureza política, já devidamente aprovados pelo Congresso Nacional." (Agência Senado)

Em 17/12/2024, o general Mourão, também da tribuna do Senado, fez duras críticas ao STF:

"O Estado de Direito se transformou em um Estado de juristas ou, até mesmo, em uma ditadura de toga. Os próprios guardiões da Carta Magna não a respeitam."

O malabarismo interpretativo das leis ou a "prensa hidráulica dialética" não coadunam com o Estado Democrático de Direito, geram insegurança jurídica, desacreditam a Suprema Corte e ofendem a separação dos Poderes, em afronta à Constituição Federal.

Por maior que seja a indignação de um julgador diante de um caso concreto e da norma a ser aplicada, deve-se lembrar que a moral vem da lei, que, em última análise, reflete a vontade popular — e não sua indignação.

Tenho dito!

Advogado fundador do escritório Bady Curi Advocacia Empresarial, ex-juiz do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais (TRE-MG) e professor universitário*

 

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Por Opinião
postado em 10/04/2025 04:00