Militante dos direitos humanos, o advogado Marcello Lavenère Machado Neto faz parte de capítulos decisivos da história brasileira. Ele foi uma das figuras centrais de um dos momentos mais conturbados da política contemporânea: o impeachment do primeiro presidente eleito pelo voto popular após a redemocratização do país. O ano era 1992. Com o discurso de caçador de marajás, Fernando Collor de Mello estava envolvido num turbilhão de denúncias, ao lado do tesoureiro de sua campanha, PC Farias.
Alagoano como Collor e PC, Lavenère era o presidente da OAB. Ao lado do então presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Barbosa Lima Sobrinho, ele assinou o pedido de impeachment, sem o qual os rumos da investigação poderiam ser outros. A petição apontava o envolvimento de Collor nos crimes de prevaricação, corrupção passiva, falsidade ideológica, formação de quadrilha e sonegação de impostos.
Lavenère se envolveu diretamente na questão. Defendeu votação aberta na Câmara na definição sobre o início de processo por crime de responsabilidade. O placar acabou sendo de 441 votos a favor, 38 contra, uma abstenção e 23 ausências.
Anistia
Em 2003, quando Lula assumiu a Presidência da República, Marcello Lavenère foi designado presidente da Comissão de Anistia, encarregada de reconhecer a condição de anistiados políticos e conceder-lhes indenização.
Durante sua gestão, o órgão consolidou-se como um instrumento de memória, verdade e justiça. "A atuação de meu pai na Comissão foi pro bono, e, mesmo assim, ele se dedicou quase integralmente à presidência", compartilha seu filho Rodrigo Lavenère. "Um traço marcante de sua atuação foi o cuidado e respeito com os que buscavam reparação. Era habitual que ele os atendesse pessoalmente, ouvindo com atenção seus depoimentos e acolhendo-os em sua dor", complementa.
Sob sua liderança, a Comissão tornou-se uma instância não apenas de reparação financeira, mas também de reconhecimento moral e simbólico. "Sua gestão fortaleceu a ideia de que a anistia deveria ser um instrumento de justiça histórica e manteve vivo o debate sobre os impactos da ditadura militar", explica José Geraldo de Sousa Júnior, advogado e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB).
Em entrevista ao Correio, em 2005, Lavenère disse que a anistia não deveria valer para todos. "Entendo que diferente é a anistia para quem estava lutando contra o regime autoritário e foi perseguido, morto, torturado, da anistia para aquele que, sendo agente da repressão, prendeu, submeteu a tortura e até matou pessoas sem defesa, além de esconder corpos que estão desaparecidos até hoje", afirmou.
Lavenère e a ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Vera Lúcia de Araújo se conheceram nessa época. "Falar sobre o Marcello traz uma certa emoção, pois realmente foi um grande aprendizado conviver com ele ao longo dos três anos em que estive na Comissão", conta.
A ministra diz que Lavenère tinha um traço de muita generosidade no acolhimento, sem hierarquizar as relações na condução dos trabalhos. "Ele era um homem de firmeza política, com um compromisso democrático inabalável, mas também com uma doçura no trato, o que nos fazia sentir realmente abrigados por ele, como se fosse um amigo de longa data.", relembra. Sob sua liderança, a Comissão ampliou o reconhecimento de categorias perseguidas pela ditadura, como estudantes, trabalhadores rurais, líderes sindicais, artistas e intelectuais.
Defesa de Dilma
Na fase do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, Lavenère foi procurado para dar apoio aos que defendiam o afastamento da petista. Lavenère era membro vitalício da OAB, que defendeu a cassação do mandato da presidente. Mas ele se opôs e atuou na defesa de Dilma.
Em depoimento na Comissão Especial do Impeachment, Lavenère disse estar em curso no país "uma manobra urdida pelo inconformismo" com o resultado das eleições. "No caso de Collor, tinha crime praticado pelo presidente, com suas próprias mãos e falta de ética. E agora não existe isso. Não havendo crime, quem por acaso aderir a essa posição faz o mesmo que um médico que prescreve uma quimioterapia pesada para quem se apresenta com um simples corte na mão. A quimioterapia tem efeitos colaterais terríveis, e nenhum médico a recomendaria se o paciente não padecesse de um grave mal", sustentou.
A ministra Daniela Teixeira, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), amiga e aluna de Lavenère na Universidade de Brasília (UnB), lembra que ele foi também um símbolo no processo de Dilma. "Ele sempre foi muito duro nas suas posições, não transigia. Não assinou nenhum ato pelo impeachment da presidente Dilma. Houve muitos pedidos", ressalta Daniela. "A OAB assinou e ele sempre disse: é um erro histórico, ela não fez nada errado, vocês estão atuando politicamente e este não é o papel da OAB", diz.
Marcello Lavenère foi professor de direito civil na UnB, na Universidade Federal de Alagoas e na Escola Superior do Ministério Público. Foi também procurador do Estado de Alagoas, membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e presidente da OAB de Alagoas por dois mandatos consecutivos. Era muito querido e admirado por alunos, amigos e pela comunidade jurídica. A OAB decretou luto de sete dias na advocacia.
Lavenère adoeceu com covid-19 na pandemia e nunca se recuperou. Passou meses internado e teve vários momentos difíceis. No último domingo, descansou, às vésperas de completar 87 anos, o que aconteceria em 30 de janeiro.
O velório reuniu juristas, amigos e familiares. No caixão, a família depositou uma bandeira de seu time do coração, o Botafogo, e discípulos colocaram uma do MST. Lavenère era apontado como bem-humorado, amigo e solidário. Gostava do mar, de mergulhar e de pesca submarina. Era apaixonado pela família. Deixa a mulher, Norma, seis filhos, 15 netos e 7 bisnetos. Seu corpo foi cremado.
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