Visão do Direito

O soldado israelense e o Tribunal Penal Internacional

"Forçar, por pressão política, ainda que por causas nobres, a instauração de um inquérito nacional para apurar crime de competência internacional é gastar dinheiro público de forma inócua..."

Por João Ibaixe Jr.* e Jonathan Hernandes Marcantonio** — A ampliação da chamada Jurisdição Internacional, especificamente aquela Jurisdição exercida por Tribunais Internacionais, como a Corte Internacional de Justiça e o Tribunal Penal Internacional, efetivada de forma permanente após a Segunda Guerra Mundial, se apresenta ainda hoje como um dos maiores projetos e desafios do direito internacional contemporâneo, havendo esforços globais e nacionais para o seu avanço, quando convém à política, claro.

Há poucos dias, presenciamos no cenário jurídico nacional um equívoco técnico feito em nome dessa integração jurisdicional. Um soldado israelense, que passava férias no Brasil, teve contra si um inquérito policial aberto, no âmbito da Justiça Federal, para averiguar possíveis crimes de guerra supostamente cometidos por ele em território estrangeiro. O pedido veio de uma organização não governamental que milita em questões de direitos humanos na Palestina, e a fundamentação desse pedido, de acordo com a causídica responsável, se fundamentou no princípio da Jurisdição Universal, que, em sua interpretação apressada, recai de maneira absoluta a todos os aspectos da Jurisdição Brasileira, uma vez que o Brasil é signatário do Estatuto de Roma.

No entanto, com todas as vênias possíveis e imagináveis, essa é uma interpretação equivocada e exagerada do Estatuto de Roma. Não temos espaço aqui para grandes interpretações sobre os artigos do referido Estatuto, mas, resumidamente, deve-se lembrar que o Tribunal Penal Internacional foi construído no sentido de dotar o cenário internacional de um sistema judiciário penal completo, isto é, com estrutura investigativa, acusatória e julgadora.

Sendo assim, como regra, só servirá para acusação e para a instauração de um processo crime no âmbito do Tribunal Penal Internacional, aqueles baseados em Inquéritos Policiais conduzidos pelo próprio procurador do Tribunal. É isso que diz expressamente o artigo 13, item 'c ' do Estatuto. Também é o artigo 13, em seus outros itens, que, se lido combinado com o artigo 1º, admite o TPI não como uma Jurisdição Universal, mas sim como uma Jurisdição complementar, o que quer dizer, em bom português, cada macaco no seu galho.

Forçar, por pressão política, ainda que por causas nobres, a instauração de um inquérito nacional para apurar crime de competência internacional é gastar dinheiro público de forma inócua, além de utilizar indevidamente as instituições judiciárias nacionais para agendas e pautas indevidas. Entendo e apoio a nobreza valorativa por trás do gesto, mas no direito, o procedimento é tão importante quanto o bem jurídico tutelado. Eu diria que o direito é feito de ambos em doses iguais.

Porém, mais surpreendente ainda, foi o Judiciário Federal brasileiro comprar essa ideia e determinar a instauração do inquérito, baseando-se no princípio e nas hipóteses de extraterritorialidade vigentes em nosso ordenamento.

Nesse ponto, também, novo equívoco, seja qual for a hipótese. Vejamos:

Se estamos falando de crime de genocídio, falamos do princípio de extraterritorialidade incondicionada. Nesse caso, é aplicável a lei se a vítima ou o autor forem brasileiros, apenas, o que não é o caso. Quem diz isso é o próprio Código Penal, em seu artigo 7º. Com outra hipótese, nos casos de crimes de guerra, se poderia argumentar que o Brasil é signatário do Estatuto de Roma e que, por essa razão, jurou reprimir tais delitos. Tal argumentação dá força para o uso indiscriminado do Princípio da Jurisdição Internacional ou Cosmopolita, mas ainda assim é, para não dizer erro, um exagero interpretativo, uma vez que o Estatuto de Roma prevê a cooperação dos países signatários para que estes auxiliem o Tribunal em sua persecução penal e não assumam o protagonismo em seu nome. Aliás, o termo Jurisdição Complementar, já utilizado aqui, dá conta exatamente dessa imagem.

Desta forma, relembramos, como advogados, que o direito é a soma equânime do bem jurídico tutelado e da forma em que essa tutela é exercida. Boas intenções normalmente acabam gerando problemas para quem não tem nada a ver com o assunto. E isso é historicamente comprovado. Como diz o ditado: "De boas intenções...".

*Advogado criminalista e ex-delegado de polícia, é doutorando em filosofia, mestre em filosofia do direito e do Estado, especialista em direito penal, pós-graduado em teoria psicanalítica e licenciado em filosofia

**Doutor em filosofia do direito e do Estado pela PUC-SP, professor universitário, advogado com ênfase em direito público

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