
Baiano de Entre Rios, Ílison Dias dos Santos se mudou para a Europa há quase 10 anos, ainda recém-formado em direito e humanidades pela Universidade Federal da Bahia. Desde então, tornou-se pós-doutor em criminologia pela Universitat de Barcelona, pós-doutor em direito penal pela Humboldt-Universität zu Berlin e doutor em direito pela Universidad de Salamanca. Hoje ele vive em Barcelona e lançou recentemente Aporofobia e Poder Punitivo, livro que descarta o desprezo à pobreza como causa do encarceramento e punição majoritária dessa parcela da população no sistema de justiça brasileiro. Segundo Ílison, o preconceito é racial e decorre das raízes escravocratas brasileiras. Na obra, que tem prefácio do jurista Eugenio Raúl Zaffaroni, juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Ílison afirma: "A ideia de aporofobia como conceito-criminológico crítico deixa escapar o elemento alimentador central de nossa seletividade penal, qual seja, a cicatriz escravocrata da sociedade brasileira".
O que sua pesquisa conclui sobre aporofobia?
Dedico-me a realizar uma análise reflexiva do atual movimento teórico de construção da ideia de aporofobia como um conceito criminológico-crítico idôneo para a crítica do exercício do poder punitivo no Brasil. Ao examinar as bases teóricas, metodológicas e políticas da ideia originária de aporofobia — concebida em outra realidade sociopolítica, a Espanha —, aponto os perigos da transposição acrítica desse conceito teórico, abstrato e generalista para o nosso contexto, marcado por uma seletividade penal abissal. A meu ver, a ideia de aporofobia como conceito criminológico-crítico deixa escapar o elemento central que alimenta nossa seletividade penal: a cicatriz escravocrata da sociedade brasileira. Assim, ao invisibilizar as causas mais próximas do agravamento dessa seletividade em relação aos considerados "párias sociais" e ao professar uma crença reiterada no direito penal como solução para problemas sociais, esse movimento termina por legitimar o atual exercício descontrolado do poder punitivo no Brasil. Busco também apontar quais são as bases teórico-metodológicas idôneas para uma crítica emancipadora desse poder punitivo descontrolado. Ou seja, reafirmo a importância da deslegitimação jurídico-penal, acrescida de uma renovação crítica realista e austral, sem perder de vista, entretanto, a necessária visão global que a complexa e interdisciplinar questão criminal exige.
O sistema de Justiça do Brasil ainda concentra punições em pobres e negros?
Diria: negros e pobres. Aqui, a ordem dos fatores é muito importante. Se observadas com honestidade intelectual, não parece coincidência o recorte racial nas cifras do grande encarceramento e da letalidade, ambas convergentes em um sujeito-tipo específico. Na verdade, qualquer pesquisador em estado prático seria capaz de compreender heuristicamente essa linha mestra que permeia o poder punitivo. Obviamente, os sujeitos que compõem essas estatísticas são pobres, pois a pobreza se nutre do racismo no Brasil. Esses indivíduos não são negros ou pardos porque são pobres; são pobres porque são negros ou pardos. Por isso, quando olvidamos essa interseccionalidade — ou seja, quando desconsideramos a racialização da pobreza no Brasil — incorremos em uma invisibilização da questão central que alimenta a seletividade do poder punitivo. É precisamente por isso que a aporofobia, se vista como conceito criminológico-crítico, dissolve-se no ar em meio a um totalismo economicista, eliminando qualquer análise crítica verdadeiramente transformadora dessa realidade. Isso porque se credita, primordialmente, ao econômico — aversão ao pobre e à pobreza — o aumento vertiginoso da atual seletividade jurídico-penal.
O STJ tem anulado de abordagens a suspeitos apenas baseada no tirocínio policial. Essas decisões vão alterar o processo penal?
Esse "tirocínio policial" nada mais é do que a velha seleção criminalizante baseada em estereótipos racistas. Embora a polícia — verdadeiro agente das seleções criminalizantes — seja guiada por esses estereótipos, é importante deixar claro que ela não os cria. Nem mesmo os meios de comunicação, ainda que desempenhem um papel significativo em sua disseminação, são responsáveis por sua origem. Eles, na verdade, precisam assumir ou se apoiar em preconceitos já enraizados na sociedade. Nesse sentido, acredito que toda forma de contenção do poder punitivo deve ser celebrada. No entanto, conhecendo a dinâmica da política criminal no Brasil, não creio que tais medidas resultem em mudanças profundas.
Que avanços houve na jurisprudência penal nos últimos anos?
Penso que os avanços mais relevantes dos últimos anos foram aqueles que restabelecem jurisprudências anteriores à chamada Operação Lava-Jato, a qual instaurou no Brasil um programa penal à margem da Constituição. Diga-se de passagem, esse programa foi patrocinado por pressões midiáticas que submeteram os tribunais a uma verdadeira coação e impuseram a juízes, desembargadores e ministros dos tribunais superiores um visível medo de linchamento midiático, caso ousassem ir de encontro ao que estava estabelecido pela cartilha da operação.
E retrocessos?
Na questão penal, a situação é realmente dramática em vários sentidos. Tenho observado, já há alguns anos, um retrocesso assustador na jurisprudência penal do Brasil. Não faz muito tempo, havia um movimento jurisprudencial de contenção do poder punitivo no país que, mesmo timidamente, teve grande relevância em temas como prescrição da pretensão punitiva, crime continuado e outros. No entanto, hoje há todos os indícios de que a jurisprudência criminal se desvinculou dessas preocupações. Talvez a evidência mais clara desse abandono seja a expedição de mandados de prisão que — como se sabe — não serão executados por falta de espaço nas prisões.
Com a anulação de várias condenações e o descrédito da Operação Lava-Jato, fica uma sensação de que os poderosos sempre encontram brechas que não beneficiam os pobres?
Sempre desconfio tanto da honestidade intelectual quanto da profundidade científica de quem defende um certo punitivismo em relação aos ricos como uma suposta demonstração de que o poder punitivo poderia ser igualitário. Há muito tempo, nenhum estudioso sério de nosso campo acredita nisso. O poder punitivo é, por natureza, seletivo em relação aos vulneráveis de cada sociedade. Vemos isso desde os relatos contidos no Malleus Maleficarum, no século XV, com a questão de gênero, até o presente, com as minorias étnicas. Está em sua essência ser seletivo. Nas raras ocasiões em que essa regra cede lugar a uma exceção, isso ocorre precisamente para confirmá-la. O objetivo é criar a ilusão de que não estamos submetidos a um sistema penal seletivo, que opera como uma rede de pesca capaz de capturar apenas os peixes pequenos, deixando os tubarões grandes livres para exercer seu instinto predatório. Quando esses "tubarões ricos" são capturados, trata-se da parcela prevista pelo sistema para ser descartada, dando a aparência de um sistema não seletivo e, portanto, supostamente igualitário.
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