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Na noite da última sexta-feira (24), uma aeronave norte-americana pousou em Manaus com 88 brasileiros deportados pelos Estados Unidos (EUA). O voo, que tinha como destino o aeroporto de Belo Horizonte, precisou realizar um pouso de emergência em Manaus devido a problemas técnicos. Na ocasião, a Polícia Federal (PF) tomou conhecimento de que todos os passageiros estavam algemados e com correntes nos pés. O fato gerou controvérsia com o governo brasileiro, que determinou a retirada das algemas e enviou uma aeronave da Força Aérea Brasileira (FAB) para transportar os deportados de maneira digna até o Aeroporto Internacional de Confins, em Belo Horizonte, onde chegaram na noite do último sábado (25).
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Após o ocorrido, o Ministério das Relações Exteriores anunciou que cobrará explicações do governo dos Estados Unidos sobre o que classificou como "tratamento degradante" dado aos deportados. Em nota, o Itamaraty afirmou que "o uso indiscriminado de algemas e correntes viola os termos do acordo com os EUA, que prevê um tratamento digno, respeitoso e humano aos repatriados". O ministério também ressaltou que segue acompanhando de perto as mudanças nas políticas migratórias norte-americanas para garantir "a proteção, segurança e dignidade dos brasileiros que vivem no país".
O voo com os 88 brasileiros faz parte das deportações em massa de imigrantes em situação irregular nos Estados Unidos, intensificadas após a posse do presidente Donald Trump. Na noite da última quinta-feira (23), uma operação anunciada pela Casa Branca resultou na detenção de 538 pessoas, com centenas delas sendo deportadas.
Segundo o advogado e professor de pós-graduação em direito migratório, Vinicius Bicalho, o uso de algemas em deportações faz parte da soberania do país que realiza a expulsão. Por esse motivo, é pouco provável que organizações internacionais consigam reverter essa prática por meio de medidas impositivas. "Para o direito americano, algemar os imigrantes visa preservar a segurança de todos os passageiros do voo, das autoridades presentes e da tripulação, prevenindo motins ou situações que saiam do controle. Já no direito brasileiro, o foco é a dignidade do detido, garantindo que ele não seja constrangido ou humilhado. Assim, sob a ótica do Brasil, houve um excesso na medida", explica o advogado, que possui licença para atuar em ambos os países.
Bicalho esclarece que Brasil e Estados Unidos mantêm um acordo de cooperação para a deportação de imigrantes, no qual o governo brasileiro recebe seus cidadãos seguindo normas administrativas estabelecidas. O objetivo é reduzir o tempo de permanência de migrantes indocumentados em centros de detenção quando não houver mais possibilidade de interposição de recursos judiciais. "Como qualquer acordo internacional, esse tratado está sujeito às normas do direito internacional e aos tratados assinados por ambos os países, incluindo princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O acordo não estabelece terminologias técnicas específicas, como a obrigatoriedade ou proibição do uso de algemas, mas a cooperação entre os dois países está formalmente regulamentada", afirma o especialista.
Direitos dos imigrantes
De acordo com Vinicius Bicalho, toda pessoa que migra está sujeita à legislação do país de destino. "É essencial destacar que, ao migrar, é fundamental seguir os trâmites legais. Cada nação possui sua própria legislação e, na maioria dos casos, imigrar sem a devida autorização configura uma transgressão legal. Como não há uma legislação universal sobre o tema, o migrante deve cumprir as normas específicas do país onde deseja residir", elucida.
No entanto, a advogada especializada em migração e refúgio, Karina Quintanilha, argumenta que, sob a perspectiva dos direitos humanos, a primeira observação a ser feita é que ninguém é ilegal. "O que vemos na realidade é que, muitas vezes, é o próprio Estado que dificulta ou impede a regularização migratória ou o direito à solicitação de refúgio, que deveria ser garantido pelos artigos 13 e 14 da Declaração Universal dos Direitos Humanos", destaca.
Nova política de deportações
O governo Trump foi eleito com um discurso de campanha centrado no combate à imigração ilegal, defendendo a deportação de imigrantes indocumentados com antecedentes criminais e o controle do fluxo migratório nas fronteiras. Dois dias antes da posse, o The New York Times publicou uma pesquisa revelando que 87% dos americanos apoiavam a deportação desses imigrantes, o que indica um amplo respaldo da população.
De acordo com o advogado, após assumir a presidência, Donald Trump implementou, por meio de uma medida executiva, procedimentos que permitiram a deportação imediata de pessoas que entravam ilegalmente no país, colocando-as diretamente em processo de remoção. "Nós tivemos pouquíssimos processos de deportação concluídos. Portanto, ainda não há elementos suficientes para afirmar que haverá um aumento significativo nas deportações. Vale lembrar que, apesar da retórica hostil de Trump, durante seu primeiro mandato, ele deportou um número menor de imigrantes do que Obama e Biden. Trump não é um monarca que pode agir sem restrições", pondera Bicalho.
Já Karina Quintanilha afirma que, durante toda a corrida eleitoral, Trump buscou convencer os eleitores da falsa ideia de que a entrada de migrantes indocumentados está associada ao aumento da violência nos grandes centros urbanos dos Estados Unidos. "Essa política anti-imigratória tem intensificado o que chamamos de criminalização da migração, ou seja, o uso do aparato estatal para perseguir, controlar, prender e deportar em massa migrantes indocumentados e suas famílias. Trata-se de uma estratégia eleitoral que tem sido peça central em campanhas de partidos de extrema-direita ao redor do mundo", ressalta.
Karina esclarece que migrar ou solicitar refúgio são direitos humanos garantidos por tratados internacionais e que as deportações em massa, como têm sido realizadas, representam graves violações desses direitos, frequentemente anulando outras garantias fundamentais, como o direito de defesa. "A economia norte-americana depende da força de trabalho imigrante, e a história dos Estados Unidos não existiria sem as migrações. No entanto, como analisa o sociólogo italiano Pietro Basso, o objetivo não é impedir a migração, mas sim criar uma migração 'sem nenhum direito'", conclui.
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