Visão do Direito

Novos protocolos do CNJ orientam juízes para perspectivas de gênero e raça

"Essas diretrizes não apenas retiram a venda da Justiça no Brasil, mas apontam para uma atuação mais inclusiva"

 2025. Eixo Capital. Thaís Cremasco, pós-graduada em direito do trabalho e previdenciário, conselheira da OAB/SP, representante da delegação brasileira na OIT (Organização Internacional do Trabalho), presidente da Comissão de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Advocacia Trabalhista (ABRAT) e cofundadora do Coletivo Mulheres pela Justiça -  (crédito:  Divulgação)
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2025. Eixo Capital. Thaís Cremasco, pós-graduada em direito do trabalho e previdenciário, conselheira da OAB/SP, representante da delegação brasileira na OIT (Organização Internacional do Trabalho), presidente da Comissão de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Advocacia Trabalhista (ABRAT) e cofundadora do Coletivo Mulheres pela Justiça - (crédito: Divulgação)

Por Thaís Cremasco* — Durante séculos, a Justiça foi retratada na forma de uma figura de olhos vendados, como símbolo de imparcialidade. Contudo, tal metáfora deixou de refletir tamanha virtude. A "cegueira" tornou-se sinônimo de incapacidade de reconhecer as desigualdades profundas e estruturais existentes na sociedade brasileira. Em 2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deu um passo decisivo para despertar essa percepção, ao lançar protocolos destinados a orientar os julgamentos a partir de uma perspectiva de gênero e raça. Essas diretrizes não apenas retiram a venda da Justiça no Brasil, mas apontam para uma atuação mais inclusiva.

Como advogada feminista e antirracista, tenho observado de perto os obstáculos enfrentados por mulheres, pessoas transgênero e negras em um sistema judicial historicamente excludente. Atuei em casos de mudança significativa, como a primeira expulsão de oito estudantes por racismo em uma escola particular no Brasil. Hoje, reconheço nos novos protocolos do CNJ uma oportunidade efetiva, que começa a transformar o Judiciário em um agente concreto de promoção da equidade.

A adoção dos protocolos pelo CNJ (Ato Normativo 0006767-34.2019.2.00.0000, Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, e Ato Normativo 0008155-57.2021.2.00.0000, Protocolo de Raça) nos tribunais abriu caminho para um Judiciário mais atento e humano, ao propor uma análise e um julgamento que considerem as vivências específicas de gêneros e pessoas negras. Em vez de manter a venda, a Justiça agora começa a enxergar: cada caso traz marcas de contextos sociais e culturais próprios. Tais diretrizes asseguram que as vozes historicamente marginalizadas sejam, finalmente, ouvidas.

Entre as medidas adotadas, destacam-se três pontos:

Capacitação dos profissionais do Judiciário: cursos e treinamentos obrigatórios sobre racismo estrutural, desigualdade de gênero e direitos humanos. Inclui-se, ainda, a revisão dos currículos de ensino jurídico, de modo a incorporar casos práticos que evidenciem o impacto dessas disparidades na aplicação da lei;

Adoção de linguagem inclusiva: recomendações para eliminar termos discriminatórios em sentenças e despachos, bem como promover um discurso que respeite a diversidade;

Análise contextualizada dos casos: consideração das condições sociais, econômicas e culturais das partes envolvidas. Isso inclui, por exemplo, observar o impacto da violência de gênero em disputas de guarda de filhos ou a dimensão racial em processos trabalhistas.

Ao longo da história, em vários momentos, o sistema judiciário brasileiro demonstrou uma percepção de superioridade que desconsiderava as realidades sociais. Essa postura não necessariamente derivava de má-fé, mas de um distanciamento estrutural que sustentava a ideia de que o direito deveria ser aplicado "neutralmente", sem levar em conta os contextos que moldam a vida das pessoas.

Os novos protocolos vêm corrigir esse equívoco histórico. A imparcialidade não inclui fechar os olhos para as desigualdades, mas reconhecê-las e agir sobre elas. Ao oferecer capacitação e orientações claras, o CNJ contribui para que magistrados compreendam que a aplicação justa das leis requer sensibilidade e consciência acerca das disparidades que afetam, sobretudo, mulheres e pessoas negras.

Em processos criminais, por exemplo, o racismo estrutural pode ser considerado na análise do encarceramento desproporcional de pessoas negras, decorrente de abordagens policiais seletivas. Já em ações na área da educação, avaliam-se como práticas discriminatórias prejudicam oportunidades acadêmicas de crianças negras, configurando potencial dano moral ou material. O reconhecimento de tais fatores não apenas humaniza os julgamentos, mas orienta decisões mais equilibradas.

Mais do que normas técnicas, esses protocolos funcionam como instrumentos de empoderamento popular. Ao reafirmarem a relevância das questões de gênero e raça, transformam o Judiciário em um catalisador de mudança social. Um exemplo prático é a aplicação desses parâmetros em situações de assédio moral ou sexual no ambiente de trabalho. Sob a ótica de gênero, é possível identificar a perpetuação de comportamentos que reforçam desigualdades e responsabilizar não só os agressores, mas também as instituições que se omitem ou são coniventes. Assim, constrói-se jurisprudência que, gradualmente, fortalece os direitos das vítimas e impulsiona a adoção de políticas corporativas mais inclusivas.

No entanto, apesar de os novos protocolos representarem um avanço significativo, ainda há desafios. A resistência de alguns setores dentro do próprio Judiciário, aliada à falta de recursos para capacitações abrangentes, pode limitar o alcance dessas mudanças. É fundamental que o CNJ, em parceria com outras entidades, acompanhe de perto a implementação das diretrizes e avalie seus resultados. Outra necessidade é conscientizar a sociedade sobre esses protocolos, criando um ambiente mais propício para o debate e a consolidação das iniciativas. A difusão de informações sobre o tema, por meio de campanhas de educação, mostra-se essencial nesse processo.

Ainda há muito a ser feito, mas a semente está bem plantada. É responsabilidade de todos — cidadãos, operadores do direito, instituições e sociedade civil — zelar para que essas diretrizes gerem ainda mais resultados concretos e duradouros. Se bem conduzido, esse processo poderá colocar o Brasil como referência de um Judiciário verdadeiramente comprometido com a construção de uma sociedade mais justa.

*Pós-graduada em direito do trabalho e previdenciário, conselheira da OAB/SP, representante da delegação brasileira na OIT (Organização Internacional do Trabalho), presidente da Comissão de Relações Internacionais da Associação Brasileira de Advocacia Trabalhista (ABRAT) e cofundadora do Coletivo Mulheres pela Justiça 

 

Opinião
postado em 30/01/2025 03:20