Visão do Direito

Pagamentos devidos a contratados da administração pública

"Um terço da pauta do Poder Judiciário nacional é ocupado com demandas contra a administração pública, atingindo o surpreendente número de 2 milhões de processos"

Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, advogado, mestre em direito público, professor de direito administrativo, escritor, consultor, conferencista e palestrante -  (crédito: Divulgação)
x
Jorge Ulisses Jacoby Fernandes, advogado, mestre em direito público, professor de direito administrativo, escritor, consultor, conferencista e palestrante - (crédito: Divulgação)

Por Jorge Ulisses Jacoby Fernandes* — Três fatos surpreendem os que se iniciam no estudo do tema "Pagamentos devidos a contratados da administração pública".

O primeiro fato é que a administração pública é o maior réu em número de processos no mundo inteiro. Um terço da pauta do Poder Judiciário nacional é ocupado com demandas contra a administração pública, atingindo o surpreendente número de 2 milhões de processos. O mais surpreendente é que todos os servidores públicos têm, como primeiro princípio constitucional, o dever do fiel cumprimento da lei: conforme o artigo 37 da Constituição Federal, o primeiro princípio é o da legalidade.

O segundo fato é que a legislação do direito financeiro, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, não permite a construção de artifícios que possibilitem um "calote" pela administração pública. Pela lei que estatui normas gerais de direito financeiro, só podem ser contraídas obrigações quando existirem créditos orçamentários correspondentes, na respectiva função programática, e suficientes. Pela Lei de Responsabilidade Fiscal, antes da contratação, o ordenador de despesas deve declarar, sob a responsabilidade inerente ao seu próprio CPF, que há dotação orçamentária e que a despesa é compatível com a Lei de Diretrizes Orçamentárias.

O cumprimento desses dispositivos deve ser rigorosamente fiscalizado pelos tribunais de contas como meio de garantir a saúde financeira das entidades governamentais. Em várias situações, os tribunais já aplicaram multas a gestores que buscaram meios de contrair obrigações, mesmo quando a lei orçamentária não permitia.

Aqui existem dois tipos de irregularidades, ambas gravíssimas.

No primeiro tipo de irregularidade, o ordenador de despesas, diante de uma necessidade relevantíssima e urgente, sem a existência de dotação orçamentária e sensibilizado pelas circunstâncias, decide fraudar a lei, considerando-a como um bem menor frente à necessidade. Isso já ocorreu aqui em Brasília, capital da República, onde, por falta de dotação para a compra de medicamentos, o ordenador de despesas contraiu obrigação direta com farmácias, por meio de "vales". Quando questionado sobre outra alternativa, minha resposta foi clara: sim, cumprir a lei.

Nesse caso específico, a legislação financeira previa que, na ausência de dotação orçamentária, a compra dos medicamentos não deveria ser realizada. A solução seria transferir a responsabilidade para o Poder Legislativo, que deveria aprovar a Lei Orçamentária Anual, já com atraso de quatro meses.

No segundo tipo de irregularidade, "criativas autoridades fazendárias" estabeleceram o procedimento de autorizar empenhos trimestrais ou até mensais, como ocorre atualmente no município de Goiânia. Pela Lei de Responsabilidade Fiscal, esse procedimento é inexistente. Ao contrário, o artigo 8º da lei determina que seja estabelecida uma programação mensal de desembolso para todo o exercício financeiro. Essa prática deveria receber especial atenção dos órgãos de controle, para coibir irregularidades que favorecem o aumento da corrupção no Brasil.

O terceiro e inovador cenário, pouco conhecido, está relacionado ao cumprimento da ordem cronológica de pagamentos. Desde a Lei nº 8.666/1993, os pagamentos dos contratos firmados com a administração pública devem ser realizados segundo rigorosa ordem cronológica de exigibilidade do crédito. A violação dessa ordem foi tipificada como crime. Apesar de nossos esforços, em vários estados brasileiros esse dispositivo permaneceu como "letra morta". Como ironicamente se afirma, faz parte do conjunto de leis que "não pegou", num descarado acinte ao Estado Democrático de Direito.

A nova Lei de Licitações e Contratos foi mais longe na busca de eficácia e no combate à corrupção nas tesourarias. Estabeleceu não apenas o dever de pagar segundo a rigorosa ordem cronológica do atesto das faturas, criminalizando com penas mais severas a sua violação, mas também impôs às tesourarias das unidades federadas o dever de publicar a ordem cronológica dos pagamentos previstos e executados, garantindo o controle social da administração.

Para evitar que essa lei se torne letra morta, foi atribuída aos órgãos de controle a competência de fiscalizar esse dispositivo.

Tratando-se de novo direito instituído por lei em favor de todos os contratados indistintamente, deve-se assegurar os meios para sua efetivação. Esses meios existem. Os contratados que tiverem seus direitos violados podem buscar a atuação do Tribunal de Contas. Inclusive, é garantida a possibilidade de pleitear sem a presença de advogado, já que os tribunais de contas - considerados "casas de esperança" pelo eminente ministro Carlos Velloso - admitem o jus postulandi. No entanto, a contratação de um advogado pode contribuir para maior celeridade, pois este terá o cuidado de preencher os requisitos legais para a representação e poderá favorecer o anonimato do contratado, caso declare que atua como cidadão.

Seguindo esse caminho, contribuiríamos, ainda que modestamente, para a redução da sobrecarga no Poder Judiciário. Como os tribunais de contas atuam diretamente na causa do problema, valorizaríamos também os princípios da legalidade e da moralidade administrativa.

Não haverá sobrecarga de trabalho nos tribunais de contas, em razão dos procedimentos típicos dos órgãos de controle. Isso porque, identificada uma única vez a violação à ordem cronológica dos pagamentos, o tribunal recomendaria a correção da irregularidade diretamente à autoridade envolvida, que certamente, mesmo tendo interesses escusos, não ousaria desacatar a determinação do tribunal.

Os tribunais de contas também podem, com ferramentas de auditoria e inspeção, verificar se está sendo cumprido o dispositivo que determina a publicação da cronologia dos pagamentos. Recentemente, o conselheiro-presidente do TCE/TO ordenou a fiscalização nesse sentido.

Não se trata aqui de tutelar o direito privado por órgão público. A execução da despesa deve ocorrer no valor precisamente correto, pago na data certa e diretamente ao respectivo credor.

Mais uma vez, há motivos para enaltecer o legislador nacional, que, em boa hora, apresentou ferramentas para corrigir problemas estruturais do país. E colocou como guardião uma instituição que tem o nobre ideário de fiscalizar a efetivação de políticas públicas.

*Mestre em direito público, professor de direito administrativo, escritor, consultor, conferencista e palestrante

 

Tags

Opinião
postado em 30/01/2025 03:10