A atriz Fernanda Torres fez história no cinema nacional ao receber o prêmio Globo de Ouro no último domingo, tornando-se a primeira brasileira a ganhar o troféu na categoria de Melhor Atriz de Drama. Torres conquistou esse feito com o filme Ainda Estou Aqui, no qual interpreta Eunice Paiva, uma mulher que, após ter o marido levado pela ditadura, torna-se uma notável advogada em defesa dos direitos humanos e um símbolo de resistência no país.
Eunice era casada com o deputado federal Rubens Paiva, com quem teve cinco filhos. O escritor Marcelo Rubens Paiva, filho do casal, é o autor do livro Ainda Estou Aqui, que inspirou o filme de grande sucesso.
Marcelo conta a história da mãe que vivia como uma dona de casa de classe média alta, no Rio de Janeiro, com os filhos e o marido até que sua vida mudou totalmente em 20 de janeiro de 1971.
Agentes do DOI-Codi invadiram sua casa e levaram Rubens. No dia seguinte, Eunice e uma de suas filhas, Eliana, também foram levadas para interrogatório. Eliana foi liberada na manhã seguinte, enquanto Eunice permaneceu nas dependências do DOI-Codi por 12 dias, de onde saiu esquálida e ainda sem compreensão do que aconteceu.
Após ser liberada, a dona de casa tentou retomar sua rotina da forma mais normal possível. Enquanto cobrava das autoridades notícias sobre o paradeiro do marido, também se dedicava a cuidar da casa e criar os filhos. Mesmo enfrentando inúmeras dificuldades, Eunice nunca quis dar à sociedade a impressão de que a ditadura militar havia vencido a família.
Recusava-se a aceitar a nomenclatura de "família vítima da ditadura". Inicialmente, ela mantinha a esperança de encontrar Rubens vivo, mas gradualmente foi assimilando a realidade de sua viuvez.
"Aos 42 anos, prestou outro vestibular. Estudou sozinha, viúva, triste. Em Santos, para onde nos mudamos. Estudou e entrou em primeiro lugar na faculdade de direito e se transferiu para a Mackenzie. Uma prima conta que minha mãe estudava o tempo todo, que nós corríamos pela casa, e ela estudava, estudava", escreveu Marcelo Rubens Paiva.
Já formada em direito, Eunice enfrentou novas batalhas: lutou pela reabertura do caso arquivado, pela emissão do atestado de óbito, pela investigação e punição dos responsáveis pelo assassinato e pela localização dos restos mortais de seu esposo. A advogada se envolveu com grupos civis que exigiam justiça para os desaparecidos e seus familiares. Sua luta por Rubens se expandiu, tornando-se uma causa em nome de todos os brasileiros. Entre essas diversas batalhas, as obras que narram a história de Eunice também destacaram sua atuação como uma das poucas advogadas da época especializadas em direito indígena.
O período da ditadura também atingiu os povos indígenas. O governo militar os perseguiu e expulsou milhares de suas terras, entre outras atrocidades. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) estimou que pelo menos 8.350 indígenas foram mortos durante esse período "em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão". Esse número alarmante refere-se a apenas 10 povos indígenas estudados pela CNV, enquanto existem 305 no Brasil. Em comparação, os desaparecidos e mortos políticos, como no caso de Rubens Paiva, somaram 434, segundo a CNV.
Durante esse período, Eunice atuou na defesa jurídica dos povos indígenas, assinando pareceres judiciais, buscando indenizações e demarcações de terras, publicando artigos e livros e contribuindo para as discussões que resultaram no capítulo Dos Índios (VIII - Arts. 231 e 232) da Constituição Federal de 1988.
Em 1978, Eunice participou da Comissão Pró-Índio de São Paulo, fundada por antropólogos como resposta à tentativa do governo militar de alterar a lei para dividir os indígenas em dois grupos: os que seguiam suas "tradições" e ainda precisavam ser "tutelados" pelo Estado, e os que se "emanciparam" por se "aculturarem". A estratégia visava retirar do segundo grupo o direito à terra, protegido desde o Brasil Colônia e pelas constituições desde 1934.
Na época, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) estava militarizada, dificultando o acesso autônomo à Justiça e agravando conflitos fundiários. A Comissão Pró-Índio de São Paulo, composta por juristas e antropólogos, surgiu como uma entidade crucial para oferecer apoio e denunciar as violações sofridas pelos povos indígenas, funcionando como um "para-raios" de conflitos em um período de pouca assistência legal para essas comunidades.
Eunice, junto à Manuela Carneiro da Cunha, uma das fundadoras da Comissão Pró-Índio e referência em antropologia no país, foi responsável por assinar um artigo na Folha de S.Paulo, em 1983, denunciando como a Funai havia agravado o conflito fundiário enfrentado pelos Pataxó no sul da Bahia. As duas expuseram que, sob pressão do governo estadual, o órgão, que deveria defender os indígenas, atuou para remover e dividir a população, deixando-a vulnerável à violência da Polícia Militar e de fazendeiros. O artigo foi um marco na luta indígena brasileira e serviu de modelo para outros povos indígenas.
Em 1985, Eunice e a antropóloga Carmen Junqueira escreveram O Estado contra o Índio, um marco na causa indigenista, que traz uma análise crítica da legislação indigenista brasileira desde a fundação da República. O livro destacou o índio como titular de direitos, denunciou violações de direitos humanos e criticou a política indigenista e a tutela da Funai. As autoras propuseram soluções, como a revisão da lei indigenista, o fortalecimento de entidades de apoio e a conscientização da população sobre a situação indígena. Além disso, ofereceram alternativas para a sobrevivência e organização dos povos indígenas contra as expropriações de terras.
No ano seguinte, Eunice escreveu um parecer crucial para a demarcação da Terra Indígena Zoró, reconhecida no ano seguinte. Os Zoró enfrentaram uma drástica redução populacional causada por surtos epidêmicos, trazidos por invasores que atuavam na pavimentação da rodovia que ligava as capitais de Mato Grosso e Rondônia.
No final da década de 1980, Eunice trabalhou no conselho consultivo da Fundação Mata Virgem, que administrava no Brasil os recursos de uma organização fundada pelo músico Sting. Ele se tornou defensor da causa indígena após uma turnê mundial ao lado do líder Raoni Metuktire, para angariar fundos para a demarcação da Terra Indígena Menkragnoti, dos Kayapó, no Xingu, homologada em 1993.
Entre seus feitos, a advogada foi uma das fundadoras do Instituto de Antropologia e Meio Ambiente (Iamá), uma organização não governamental que colaborou na criação de diversos projetos de saúde, educação e política para povos indígenas. Ela atuou no instituto até 2001. Além de sua atuação no mundo jurídico, ela também participava de congressos acadêmicos, debates públicos, sessões de documentários, palestras e reportagens culturais.