Por José Geraldo de Sousa Junior* — O filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, retrata a história de Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres e Fernanda Montenegro em diferentes fases da vida. O enredo aborda a luta de Eunice para esclarecer o desaparecimento de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, sequestrado pelos militares em 1971, durante a ditadura brasileira.
Walter Salles afirmou que o filme, embora retrate o passado, reflete sobre o Brasil atual, especialmente diante da ascensão de movimentos de extrema-direita. Segundo ele, o projeto, inicialmente focado na ditadura militar, transformou-se em uma reflexão sobre o presente do país.
Baseado nas memórias de Marcelo Rubens Paiva sobre sua mãe, Eunice Paiva, o filme destaca a resiliência e a força de uma mulher que, após a perda do marido, transforma-se em uma ativista comprometida.
A premiação de Fernanda Torres como melhor atriz de filme de drama no Globo de Ouro gerou uma onda de manifestações e mensagens de reconhecimento, exaltação e celebração. Foi uma mescla de paixão, alegria e vitória moral de um país e de um povo em luta pela democracia, pela verdade na política e pela justiça, visando responsabilizar os perpetradores de violações aos direitos humanos, à Constituição e às instituições republicanas.
A síntese desses sentimentos está na crônica de Milly Lacombe (UOL, 06/01/2025), intitulada Vamos sorrir. Sorriam. A jornalista recupera a ideia de que a alegria é uma ferramenta de luta e que sorrir na cara dos amantes da tortura e dos torturadores nos fortalece no presente para mudar o futuro. É um gesto de enfrentamento contra o precário, a injustiça, a prepotência e o descalabro, fortalecendo-nos para cobrar responsabilidades daqueles que promoveram as violências contra os que amamos.
Toda essa exaltação ocorreu às vésperas do 8 de janeiro, uma data que simboliza novos paroxismos nessa luta. Nesse contexto, os mesmos violadores de direitos humanos, seus apoiadores e porta-vozes têm recrudescido práticas antidemocráticas, antipopulares e de lesa-humanidade, chegando a atentados contra a vida de autoridades da República e contra as instituições. Persistem em artifícios judiciais e mecanismos de autoanistia para se eximirem de responsabilização.
Um exemplo disso é o Projeto de Lei nº 5064 de 2023 (PL 5064/2023), que propõe anistia aos acusados e condenados pelos crimes definidos nos arts. 359-L e 359-M do Código Penal, em razão das manifestações ocorridas em Brasília, na Praça dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro de 2023.
O projeto de lei é, ao mesmo tempo, uma confissão e uma mobilização sem justa causa ou base constitucional, nem respaldo no sistema internacional de direitos humanos, especialmente na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Busca impor um silêncio perpétuo sobre delinquências de alta gravidade.
Sob a melhor orientação da justiça de transição, é fundamental lembrar que repúdio, responsabilização e justiça são pilares para prevenir recorrências e não premiar contraventores que lesaram a humanidade, o país e o povo. Como evidenciado no livro série O Direito Achado na Rua, vol. 7: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina, tais medidas não devem consolidar a impunidade.
A autoanistia ou qualquer medida destinada a gerar impunidade para infrações de tortura e outros crimes imprescritíveis são inconstitucionais e inconvencionais. A Justiça Transicional requer que o Brasil observe as reiteradas manifestações da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que afirmam que disposições de anistia ampla, absoluta e incondicional consagram a impunidade em casos de graves violações dos direitos humanos.
Nesse cenário, o sucesso de Ainda Estou Aqui, intensificado pela vitória de Fernanda Torres, vem da capacidade da arte, da literatura e do cinema de galvanizar o público ao tocar o sensível e retratar o real de forma mais direta e compreensível que a causalidade científica.
O filme se enquadra na categoria de resistência de que fala Vladimir Carvalho em A Resistência em Brasília - Um Breve Testemunho (Série O Direito Achado na Rua, vol. 7). É o cinema contribuindo para a reconstrução democrática e a superação do autoritarismo. Como afirma Vladimir, diretor de Barra 68 - Sem Perder a Ternura, Ainda Estou Aqui é mais um exemplo de arte transformadora que fortalece a luta por memória, verdade e justiça.
*Professor emérito e ex-reitor da UnB (2008-2012); colíder do grupo de pesquisa O Direito Achado na Rua
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