Visão do Direito

Estado interamericano de direito: Ainda não estamos aqui

"Crimes contra a humanidade, como torturas e desaparecimento forçados, exigem responsabilização para que a memória coletiva possa promover justiça e reconciliação"

Siddartha Legale, professor da UFRJ e advogado -  (crédito: Dilvugação)
Siddartha Legale, professor da UFRJ e advogado - (crédito: Dilvugação)

Por Siddartha Legale* — Esquecimento ou memória. Impunidade ou responsabilização. Ditadura ou Estado Democrático de Direito. Desaparecimento forçado ou justiça de transição. Esses são alguns dilemas que a vida família Paiva, o livro e o filme, “Ainda estou aqui”, abordam sobre o assassinato e desaparecimento forçado do pai de família, engenheiro e deputado Rubens Paiva.

Quando Fernanda Torres ganha o Globo de Ouro de melhor atriz ao interpretar Eunice Paiva, a comoção nacional traz a esperança de que se retire da “coxia” metafórica do teatro social, político e jurídico ao menos do questionamento da ativista e advogada sobre a possibilidade de responsabilização pelos crimes da ditadura militar.

Em termos sociais, a memória se apresenta como um desafio coletivo, essencial para evitar o apagamento de episódios traumáticos da história. Marcelo Rubens Paiva descreve poeticamente no livro: “A memória é uma coisa mágica não desvendada. Um truque da vida. Uma memória não se acumula sobre outra”

Essa reflexão sublinha que, enquanto os indivíduos podem esquecer, ao Estado não é dado essa faculdade. Crimes contra a humanidade, como torturas e desaparecimento forçados, exigem responsabilização para que a memória coletiva possa promover justiça e reconciliação. A negligência em implementar integralmente as determinações dos casos da Corte IDH, como os de Vladimir Herzog (2018) e Julia Gomes Lund (2010), exemplificam o fracasso do Brasil em preservar a memória e garantir o acesso à Justiça. Para o Estado, a memória não pode ser mágica. Dever ser investigada.

Em termos políticos, a justiça de transição no Brasil permanece limitada e incompleta, porque não se implementou uma política pública efetiva. O conceito de “justiça de transição programática”, proposto por Manoel Severino Moraes de Almeida, evidencia a desconexão entre o compromisso político e a implementação de comissões da verdade, reformas institucionais, programas efetivos de reparação às vítimas e de memória, bem como de processos de investigação, processo e julgamento dos responsáveis.

Embora o Brasil tenha ratificado a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas, faltam medidas concretas para implementar suas diretrizes. E desde a condenação do Brasil no caso Gomes Lund em 2010, há uma determinação específica para o Brasil tipificar o desaparecimento forçado como crime, que até hoje não foi cumprida, passados quase 15 anos da exigência internacional. Governos de diferentes espectros políticos estiveram no poder nesse período, perpetuando essa omissão e mantendo a justiça de transição como uma promessa.

Em termos jurídicos, o debate sobre a responsabilização dos crimes da ditadura é marcado por divergências institucionais até hoje. O Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a Lei de Anistia compatível com a Constituição, afirmando equivocamente que ela possui caráter bilateral e não se configura como autoanistia. A Corte IDH, por outro lado, considera a lei brasileira inconvencional, exigindo sua superação para garantir justiça às vítimas. Essa divergência institucional reflete a dificuldade de harmonizar os compromissos internos com as normas internacionais de direitos humanos, perpetuando os conflitos sobre o alcance da justiça de transição.

Recentemente, novos episódios trouxeram nuances ao debate. De um lado, o excelente voto do juiz Rodrigo Mudrovistch na sentença Ubaté e Bogotá vs. Colômbia, proferida pela Corte IDH em dezembro de 2024, reafirmou a necessidade de punir crimes de desaparecimento forçado e destacou o papel de normas penais específicas para garantir o direito à verdade. A divergência aberta chama atenção para um ponto fundamental: a compatibilidade entre a lei colombiana sobre desaparecimento forçado com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, por meio de um escrutínio estrito da convencionalidade das normas penais à luz do princípio da proporcionalidade como vedação da proteção insuficiente. Esse parâmetro é o que, em termos ideais, deveria ser aplicado no Brasil.

Recentemente, no plano interno, esse tema também voltou a estar em evidência no STF após o importante voto do Min. Flávio Dino, no ARE 1.501.674/PA, sobre a não aplicação da lei de anistia aos fatos posteriores a 16 de agosto de 1979, argumentando que o crime de ocultação de cadáver não ocorre apenas instantaneamente, mas com a manutenção da omissão do local onde se encontra o cadáver, além de impedir os familiares de exercerem seu direito ao luto.

Em suma, o Brasil não realizou o controle de convencionalidade destrutivo da lei de anistia, não realizou o controle de convencionalidade construtivo do tipo penal de desaparecimento forçado, a nossa justiça de transição ainda é programática e não há políticas públicas para uma proteção suficiente dos direitos humanos fundamentais, daqueles que tiveram seus direitos violados pela ditadura militar.

Apesar da conquista simbólica do Globo de Ouro de Fernanda Torres, os direitos reivindicados por defensores de direitos humanos, como Eunice Paiva, em geral, permanecem na “coxia” em termos metafóricos do teatro político e jurídico, paralisados por um Executivo/Legislativo que não se movimentam para legislar a respeito. E por um sistema de Justiça que não investiga, processa, julga os crimes da ditadura militar.

O fato de a validade da Lei de Anistia permanecer, de acordo com as decisões do STF, mas inválida internacionalmente pelo que decidiu a Corte IDH, é sintoma de nossa programática e inefetiva transição da ditadura para democracia. Esperamos que novos parâmetros e casos futuros do STF tragam uma mudança necessária neste cenário.

O contraste entre a arte e vida real revela que, embora as reinvindicações da Eunice de Fernanda estejam aqui hoje nos holofotes nacionais e internacionais, a euforia com vitória do Globo de Ouro passará. Celebremos a conquista hoje. Mas, principalmente, sonhemos com um Estado Interamericano e Democrático de Direito de verdade, porque, neste, não... Ainda não estamos aqui.

*Professor da UFRJ e advogado

Tags

Opinião
postado em 09/01/2025 04:30
x