Por Silvia Virgínia de Souza* — A obtenção do Globo de Ouro pela atriz brasileira Fernanda Torres foi comemorada pela maior parte da população brasileira. O filme que lhe rendeu esse reconhecimento é igualmente celebrado, tanto no Brasil quanto no exterior, por retratar a história de crimes, injustiça e persistência de uma mulher, Eunice Paiva, que perdeu o marido para os horrores da ditadura militar brasileira. O deputado federal Rubens Paiva, como sabemos hoje, foi preso e torturado pelo regime militar, que também tratou de ocultar seu cadáver, negando à família algo que qualquer sociedade considera sagrado: a possibilidade de realizar um velório, um enterro ou qualquer outro tipo de despedida e luto.
Entre as várias questões que permeiam o filme, destaca-se a impunidade dos crimes praticados por militares durante a ditadura que desgovernou o Brasil por duas longas décadas. Torturas, sequestros, prisões ilegais, julgamentos arbitrários, cassações de mandatos políticos e intimidação de juízes foram algumas das faces da violência perpetrada nesse período. É hora de o país encarar essa questão e, de uma vez por todas, chegar a uma solução. Não é possível que crimes considerados danosos à humanidade permaneçam impunes no Brasil. O resultado dessa inércia, como vimos, é o ressurgimento, de tempos em tempos, de movimentos golpistas que nascem e se fortalecem com discursos de ódio contra a democracia, as liberdades individuais e as minorias.
A mais recente expressão desse tipo de pensamento culminou em outra tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, em 8 de janeiro de 2023. A data, que completa dois anos nesta quarta-feira, é um marco na história nacional e precisa ser lembrada para que não se repita. Agora, em 2025, temos restaurados os prédios e objetos de valor histórico e cultural que carregarão, para sempre, as marcas daqueles ataques – como, por exemplo, o relógio do século XVII trazido pela corte portuguesa ao Brasil em 1808 e um quadro do mestre Di Cavalcanti. Essas restaurações nos remetem a um dos papéis importantes da arte: refletir seu tempo e perpetuar na história os fatos que ocorreram e marcaram os caminhos e vicissitudes de um povo, para que nada seja apagado ou esquecido.
As torturas praticadas pelo regime militar brasileiro são exemplos de "grave e generalizada violação de direitos humanos", um conceito explicitado na Lei 9.474, de 1997. Hoje, essa definição é amplamente aplicada no campo do direito migratório, possibilitando a análise de solicitações de reconhecimento da condição de refugiado, como nos recentes casos de afegãos e venezuelanos que buscaram asilo no Brasil. O mesmo tipo de violação foi constatado no relatório final da Comissão de Direitos Humanos da OAB Nacional sobre os povos indígenas Yanomami.
Cabe observar que a tortura não foi uma prática exclusiva do regime militar, cujas vítimas, em sua maioria, eram opositores brancos. O Brasil é um país estruturado em uma violência que tem como gênese a perpetração da tortura em variadas formas, físicas e psicológicas. Basta olharmos para o período de 388 anos em que as populações negra e indígena viveram sob o jugo da escravidão – pelo qual jamais receberam reparação econômica do Estado.
Não precisamos, no entanto, ir tão longe no resgate histórico. A impunidade à tortura do período colonial e da ditadura segue como força motriz da repetição dessa prática, como demonstrado pelos recentes e numerosos casos de violência policial contra, sobretudo, a população negra e das periferias. Embora a criminalidade seja um problema enfrentado no dia a dia do cidadão e a rotina dos policiais seja perigosa, não se pode aceitar que uma corporação do Estado incorpore a tortura como método de trabalho. Na prática, o que temos é um processo de extermínio direcionado a grupos específicos – em geral, negros e outras minorias. Em boa parte do território nacional, a Constituição e o Estado de Direito são meramente formais, "para inglês ver", e a tortura é a regra.
O prêmio conquistado por Fernanda Torres reconhece seu desempenho magnífico como grande atriz e coloca o filme dirigido por Walter Salles no lugar de destaque que lhe cabe. Mas, acima de tudo, a premiação reconhece e transmite ao mundo uma história que o Brasil reluta em reconhecer como parte de seu passado. Um passado que não deve ser enterrado nem esquecido. Que, a partir disso, outras histórias e outros "Brasis" também sejam revelados, permitindo que a punição rigorosa e adequada aos crimes cometidos seja, finalmente, aplicada.
*Advogada, conselheira federal pela OAB-SP e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB
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