Desde 2022, a Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH) da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) é presidida por Silvia Souza, a primeira mulher negra a ocupar o cargo. Eleita conselheira federal pela OAB São Paulo na chapa liderada pela presidente Patrícia Vanzolini, a advogada foi nomeada pelo presidente nacional da OAB, Beto Simonetti, para liderar a comissão. Em sua gestão, ela atuou em casos de grande relevância, como o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, garantindo o acesso da procuradora da família aos autos do inquérito.
No mesmo ano da posse de Silvia, a CNDH participou como amicus curiae no julgamento, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, do assassinato de Gabriel Sales Pimenta, resultando no reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro e na determinação de políticas de proteção a defensores de direitos humanos. A Comissão também trabalhou pela responsabilização dos agentes envolvidos na morte de Genivaldo de Jesus, asfixiado em uma viatura da Polícia Rodoviária Federal, cobrando celeridade nas investigações e ações judiciais.
"Na verdade, eu não sou apenas a primeira mulher negra, eu sou a primeira mulher e, também, a primeira pessoa negra a presidir da comissão, nunca houve antes na presidência da Comissão de Direitos Humanos uma mulher. Isso é bastante significativo, porque torna a nossa gestão disruptiva nos aspectos de gênero e raça. Além de ser muito representativo no plano da estético, é principalmente porque trago em mim, as vicissitudes de mulher, de pessoa negra, da pobreza e isso agrega aos trabalhos da comissão uma nova perspectiva, uma ótica delineada a partir do lugar de onde eu venho, mas não se encerra em mim, pelo contrário, estende-se a diversos grupos populacionais tratados como minorias", expõe a advogada.
De origem humilde, Silvia nasceu em Itapevi, cidade localizada na Região Metropolitana de São Paulo, e cresceu em um bairro da periferia chamado Vila Santa Rita, conhecido, na época, pelo alto índice de criminalidade. "Nós vivíamos cercados pela violência, volta e meia chegando do trabalho tarde da noite encontrava corpos no chão, muitos dos nossos conhecidos", detalha. Aos 12 anos, seu pai abandonou o lar e a partir daí, sua mãe, que trabalhava como empregada doméstica, assumiu sozinha a responsabilidade de sustentar a casa. "Nós vivíamos uma dificuldade financeira muito severa e uma situação de insegurança alimentar constante", conta.
Com 17 anos, a advogada ingressou na Educafro, uma ONG voltada para o acesso de afrodescendentes e pessoas vulneráveis ao ensino superior público, e segundo ela, foi um grande ponto de virada. "Através da Educafro, eu conheci o Congresso Nacional, o Parlamento, o processo legislativo e isso pra mim foi determinante, porque eu entendi que o direito pode ser e é uma ferramenta de transformação social", explica.
Após concluir o ensino médio não foi possível se dedicar aos estudos para cursar uma faculdade pois precisava trabalhar para complementar a renda de sua família. "Fui operadora de caixa de uma grande rede de supermercados por dois anos, vendi livros, entreguei panfleto no farol, fui funcionária de uma financeira, enfim… fiz um monte de coisas", relembra. Silvia só ingressou na faculdade de direito após completar seus 22 anos por intermédio do Programa Universidade para Todos (Prouni), com uma bolsa de 100% na Universidade Paulista (Unip) . Segundo ela, a escolha do curso foi uma forma de resitência.
"A sobrevivência me levou ao direito. A pobreza, a miséria, a falta de recursos, a exclusão sistemática do acesso ao básico e a constante negação da dignidade. Percebi que isso não afetava apenas a mim, mas também uma imensa parcela da população pobre e negra. Se eu pudesse traduzir em sentimentos, diria que foram a revolta e a indignação geradas por essas situações, mas também a fé, a esperança e a determinação de não aceitar passivamente o que o sistema nos impõe. Foi isso que me levou ao curso", explica a advogada.
Na faculdade, Silvia continuou enfrentando desafios. "O primeiro ano foi especialmente difícil", relembra. Desempregada, ela precisava pegar dois ônibus para chegar à faculdade. Para economizar, percorria o primeiro trecho a pé e utilizava o ônibus apenas para o trajeto mais longo. No segundo ano, conseguiu um emprego como operadora de telemarketing, o que ajudou a aliviar um pouco as dificuldades financeiras, e no terceiro ano, conseguiu um estágio em um escritório no qual foi efetivada e permaneceu até o fim da graduação.
"Eu agarrei a oportunidade do estágio como se minha vida dependesse disso e realmente dependia. Quando você sai de uma situação como a que eu vivia, a primeira oportunidade que aparece pode ser a última. Todos esses desafios me levaram a estudar cada vez mais, a "provar" constantemente que eu sou capaz, que sou tão inteligente quanto qualquer pessoas considerada capaz pela elite do direito", afirma.
Graduada e aprovada na OAB, Silvia iniciou a sua carreira na advocacia trabalhista, conciliando essa atividade com sua atuação voluntária na Educafro. Na época, ela assessorou questões jurídicas e legislativas junto ao STF, ao TSE, à Câmara dos Deputados e ao Senado, contribuindo para a análise de projetos de lei relacionados a políticas públicas e para a elaboração de peças na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41, que trata da constitucionalidade da Lei de Cotas em concursos públicos. Em 2019, a advogada foi responsável por uma sustentação oral no Superior Tribunal Federal (STF) , em julgamento sobre a constitucionalidade da prisão em segunda instância, a qual considera o momento mais desafiador de sua carreira.
"Sem dúvidas, o maior desafio foi proferir sustentação oral no STF em 2019, nas ADCs que tratavam sobre a relativização da presunção de inocência e a manutenção da prisão em segunda instância. Eu fui informada pela organização que representei, na qual eu trabalhava, menos de 24 horas antes da sessão, com pouquíssimo tempo para me preparar, era também a única mulher e pessoa preta a proferir sustentação oral, num tema que diz respeito frontalmente a nossa existência, haja visto que a presunção de inocência nas periferias Brasil afora, se quer é respeitada", elucida.
Atualmente, Sílvia é mestranda em direito, com ênfase em Criminologia, pela Universidade de Brasília (UnB). Possui especialização em Direitos Humanos, Diversidades e Violências pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e em direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Damásio de Jesus. Integra o Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e atua como membro associado e parecerista do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Na Defensoria Pública do Estado de São Paulo, compõe o Conselho Consultivo da Ouvidoria e, em âmbito nacional, representa a OAB no Comitê de Diversidade e Inclusão da Advocacia-Geral da União (AGU).
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