Por Rodrigo Forlani Lopes* e Rubens Bezerra Filho** — A Lei 14.879/2024 inseriu novos critérios no artigo 63 do Código de Processo Civil (CPC), especialmente nos parágrafos 1º e 5º, que passaram a exigir que a eleição de foro tenha uma vinculação direta com o domicílio ou a residência das partes ou com o local da obrigação. Essa alteração legislativa, embora recente, não inovou propriamente a jurisprudência, mas sim consolidou uma tendência que já vinha sendo aplicada por muitos tribunais. Esses, preocupados em coibir possíveis abusos, frequentemente recusavam a aplicação de cláusulas de eleição de foro que fossem consideradas "aleatórias", com o argumento de que a escolha de um foro distante das partes ou do objeto do contrato seria prejudicial ao princípio do juiz natural e à facilitação do acesso à justiça.
No entanto, ao transformar essa prática em regra rígida, a Lei 14.879/2024 ignora um fator crucial: a liberdade contratual das partes e o princípio da autonomia privada, que são pilares tanto do direito civil quanto da economia de mercado. O que a lei faz, de fato, é engessar as relações comerciais ao limitar drasticamente a liberdade das partes de escolher o foro mais adequado para suas disputas. Essa limitação é contrária ao espírito do CPC, que sempre priorizou a liberdade das partes em questões de competência territorial, permitindo que pudessem decidir qual foro melhor lhes atendia.
A autonomia da vontade é um princípio fundamental do direito civil, refletido também no direito processual civil, que assegura às partes a liberdade de ajustar suas relações jurídicas conforme seus interesses. No âmbito da eleição de foro, essa autonomia sempre foi um meio de garantir que as partes, conhecendo melhor os termos de seus negócios, possam decidir onde preferem resolver suas eventuais controvérsias. A eleição de foro é muitas vezes uma estratégia para trazer maior previsibilidade e eficiência ao processo judicial, facilitando a logística, os custos processuais e, em muitos casos, respeitar o equilíbrio contratual estabelecido.
A rigidez imposta pela Lei 14.879/2024 contraria esse princípio ao impor uma limitação artificial à escolha das partes. Ao condicionar a validade da eleição de foro à sua vinculação com o domicílio das partes ou ao local da obrigação, a legislação desconsidera o caráter dinâmico das relações comerciais modernas, onde as partes podem, por diversos motivos legítimos, preferir foros distintos. A limitação criada pela lei acaba sendo uma interferência indevida do Estado, que, sob o pretexto de proteger o acesso à Justiça, desrespeita a liberdade de contratar e a real vontade das partes.
Exame de ponderações
Ao criticar essa alteração legislativa, é preciso fazer um exame de ponderações entre dois princípios em tensão: (i) a autonomia privada e (ii) o acesso à Justiça. Por um lado, o princípio da autonomia privada garante às partes a liberdade de contratar e estabelecer as regras que melhor se ajustem a seus interesses. Por outro lado, o princípio do acesso à Justiça assegura que as partes tenham a oportunidade de litigar em condições de igualdade, com fácil acesso ao foro judicial.
A nova redação do art. 63 do CPC busca reforçar o acesso à Justiça, evitando que cláusulas de eleição de foro possam criar dificuldades para a parte hipossuficiente, especialmente em contratos de adesão e de consumo. Contudo, ao aplicar essa regra de forma indiscriminada, a lei acaba por ignorar situações em que as partes, com plena igualdade de condições e de forma consciente, escolhem um foro que lhes é conveniente.
Nessas circunstâncias, a liberdade de escolha do foro não representa um obstáculo ao acesso à Justiça, mas sim uma maneira eficiente de ajustar os interesses das partes.
O acórdão do TJSP no Agravo de Instrumento nº 2215581-03.2024.8.26.0000 é um exemplo de caso em que a vontade das partes deveria ser respeitada. Ambas as partes se manifestaram expressamente pela manutenção da ação no foro escolhido, e não havia qualquer indício de abuso ou prejuízo. A aplicação da nova lei, com sua rigidez, nesse contexto, representaria uma interferência desnecessária, contrária à autonomia das partes. Felizmente, como a ação foi ajuizada antes da vigência da nova lei, o tribunal não teve alternativa senão declarar que a cláusula de eleição de foro deveria ser respeitada.
Instrumento de previsibilidade
A liberdade de escolher o foro, quando utilizada de maneira legítima pelas partes, atende melhor ao interesse comum de segurança e previsibilidade jurídica. Em relações comerciais complexas, especialmente em contratos de longo prazo e de alta magnitude econômica, a escolha do foro pode ser estratégia para garantir que disputas sejam resolvidas de forma eficiente, em um local com infraestrutura jurídica adequada, familiar às partes ou aos seus advogados.
Além disso, a eleição de foro é muitas vezes uma medida que visa otimizar custos e recursos. Por exemplo, partes que têm negócios em diferentes estados ou países podem preferir um foro neutro ou um foro em uma localidade com melhor estrutura judicial. Ao limitar essa liberdade, a nova legislação prejudica a eficiência das transações comerciais e, em última análise, pode desencorajar o uso de contratos sofisticados, já que as partes ficam sujeitas a decisões que podem não refletir seus interesses ou suas intenções originalmente contratadas.
Realidades comerciais
O que a Lei 14.879/2024 fez foi transformar em regra o que já vinha sendo uma prática comum nos tribunais. Muitos tribunais, de fato, vinham aplicando uma interpretação mais restritiva às cláusulas de eleição de foro, especialmente em contratos de adesão ou envolvendo partes com poder econômico desproporcional.
No entanto, essa prática, embora voltada à proteção do acesso à Justiça, tem efeitos colaterais prejudiciais, pois engessa as relações comerciais e ignora a realidade de contratos empresariais entre partes de igual poder pecuniário.
A jurisprudência que influenciou essa mudança legislativa muitas vezes falha em diferenciar situações de abuso de cláusulas de eleição de foro e casos em que as partes deliberadamente optaram por um foro que melhor atende seus interesses. A generalização desse entendimento compromete a flexibilidade que é necessária para o desenvolvimento de negócios e para a adaptação das relações jurídicas às suas particularidades.
A imposição de restrições à escolha de foro representa um retrocesso na preservação da autonomia privada, um dos pilares fundamentais do sistema jurídico brasileiro. O endurecimento da regra ignora a diversidade e a complexidade das relações comerciais no Brasil.
O impacto já começa a ser sentido em novas negociações contratuais, especialmente no âmbito empresarial. Contratos que antes previam livremente a eleição de foro como um mecanismo de eficiência e previsibilidade agora enfrentam maiores obstáculos para garantir a validade dessas cláusulas. Empresas têm se deparado com a necessidade de rever suas estratégias contratuais, seja limitando suas opções de foro, seja enfrentando maiores incertezas quanto à validade de acordos previamente celebrados.
Essa nova realidade jurídica pode, a médio e longo prazo, gerar consequências indesejadas para o ambiente de negócios. Ao restringir a flexibilidade das partes na escolha do foro, a lei introduz uma incerteza jurídica que pode afetar a confiança nas negociações e diminuir a agilidade necessária para adaptação das partes às suas necessidades comerciais. A limitação da autonomia contratual pode também elevar os custos processuais e a complexidade na resolução de disputas, prejudicando a segurança jurídica almejada pelas partes com a eleição de foro.
Ainda é cedo para avaliar o real alcance dessas mudanças. Somente com o tempo será possível dimensionar as consequências desse endurecimento da regra. As partes terão de testar os limites da nova legislação nos tribunais e adaptar-se a uma jurisprudência que, por sua vez, poderá evoluir em resposta às novas demandas e desafios. No entanto, o risco de que essa rigidez comprometa a eficiência das transações comerciais e a autonomia das partes já se faz presente.
A preservação da liberdade de escolha, ao menos nos casos em que as partes contratantes têm plena capacidade e igualdade de condições, continua sendo a melhor forma de assegurar que os interesses de ambas sejam respeitados. A Lei de Liberdade Econômica, ao valorizar a autonomia da vontade e a mínima intervenção estatal nas relações econômicas, deve servir como contraponto necessário à aplicação das novas regras processuais.
É crucial que, no desenvolvimento da jurisprudência sobre a Lei 14.879/2024, prevaleça uma interpretação ponderada, que leve em consideração a necessidade de preservar a liberdade contratual e a eficiência dos arranjos processuais criados pelas partes. Dessa forma, será possível equilibrar a proteção ao acesso à Justiça com a manutenção da autonomia privada, promovendo um ambiente jurídico que favoreça a previsibilidade, a segurança jurídica e o desenvolvimento econômico.
*Especialista em processo civil e sócio do Machado Associados
**Sócio na área de contratos e societário do Machado Associados
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