Visão do Direito

Foro privilegiado e o desmembramento de processos

A dispersão processual pode comprometer a unidade da investigação e a igualdade de tratamento entre os réus, ameaçando a segurança jurídica

Flávia Silva Pinto Amorim, Marcella Halah Martins Abboud e  Lucca Fagundes Mazzon, advogados membros do escritório Cecilia Mello Advogados -  (crédito: Divulgação)
Flávia Silva Pinto Amorim, Marcella Halah Martins Abboud e Lucca Fagundes Mazzon, advogados membros do escritório Cecilia Mello Advogados - (crédito: Divulgação)

Por Flávia Silva Pinto Amorim, Marcella Halah Martins Abboud e Lucca Fagundes Mazzon* — O foro por prerrogativa de função, ou foro privilegiado, é um mecanismo jurídico que define a competência para julgamento de determinadas autoridades por tribunais superiores, como o STF e o STJ. Esse instituto visa proteger o exercício de funções públicas, assegurando a imparcialidade e evitando pressões políticas em processos de grande relevância social. Entre as autoridades com essa prerrogativa estão o presidente da República, ministros de Estado e membros do Congresso Nacional.

Contudo, a abrangência do foro e sua aplicação em casos envolvendo múltiplos réus, muitos dos quais sem prerrogativa de função, têm gerado debates sobre o desmembramento de processos. A análise de julgamentos importantes pelo STF e STJ revela as implicações dessa questão.

Um caso emblemático foi a Ação Penal 470, o "Mensalão", em 2012, quando o STF decidiu não desmembrar o processo, de forma a manter todos os réus sob sua competência. Argumentou-se que dividir o julgamento traria riscos de decisões contraditórias e manobras protelatórias. O ministro Gilmar Mendes sustentou que a coesão processual evitaria que o processo se estendesse e caísse em prescrições estratégicas.

Outro exemplo importante foi o Inquérito 4.435/DF, sobre caixa dois eleitoral, em que o STF decidiu transferir o caso para a Justiça Eleitoral do Rio de Janeiro, devido à competência dessa esfera em crimes eleitorais e conexos. A decisão, fundamentada na conexão probatória, reflete uma postura de especialização da Justiça Eleitoral, evitando a fragmentação das ações.

No entanto, em outras ocasiões, o STF optou pelo desmembramento parcial. No Inquérito 2.471/SP, sobre lavagem de dinheiro e formação de quadrilha, o desmembramento foi parcial para evitar a prescrição, dada a idade avançada do réu principal. O ministro Ricardo Lewandowski ressaltou que uma divisão total poderia prejudicar a integridade das provas e do julgamento.

A questão também se estendeu ao entendimento sobre a manutenção do foro após a perda do cargo. No Inquérito 4.787/DF, a maioria dos ministros do STF votou pela continuidade do foro em casos que envolvem crimes praticados durante o mandato, mesmo após a saída do cargo, para manter a segurança jurídica.

Esses julgamentos têm orientado o STJ na interpretação do foro privilegiado e do desmembramento, como no caso do HC 347.944/AP, em que o relator Reynaldo Soares da Fonseca apontou a necessidade de coesão processual. Fonseca enfatizou que a separação deve considerar conveniência e oportunidade, visando a uma análise integral das provas e evitando decisões conflitantes.

A recente aplicação do verbete sumular nº 704 do STF reforça que, por conveniência e conexão, réus sem prerrogativa de foro podem ser julgados conjuntamente com autoridades. Contudo, essa abordagem não é isenta de críticas. A dispersão processual pode comprometer a unidade da investigação e a igualdade de tratamento entre os réus, ameaçando a segurança jurídica.

O desmembramento, embora positivo para a celeridade, exige cautela para evitar fragmentação excessiva, com julgamentos em instâncias distintas. A jurisprudência tem destacado que a decisão de desmembrar deve equilibrar a necessidade de coesão da investigação e a otimização da tramitação processual, sob pena de fragmentar a aplicação da lei e gerar decisões contraditórias.

*Advogados do escritório Cecilia Mello Advogados

 

postado em 28/11/2024 03:00
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