Entrevista

Faltam defensores públicos em 40% das comarcas, diz Rivana Ricarte

Em entrevista ao Correio, a presidência da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos defendeu a atuação dos defensores contra condenações injustas

Num país com 80 milhões de processos em tramitação, a Defensoria Pública, responsável pela defesa de quem não tem condições de pagar um advogado, deveria ser presente em cada canto do mapa. Principalmente porque 90% dos casos de ações criminais envolvem assistência jurídica gratuita.

A ausência da atuação de um defensor pode levar a casos de prisões injustas e condenações de inocentes. É o que aponta a presidência da Associação Nacional dos Defensores Públicos, Rivana Ricarte. Segundo ela, 10 anos depois da edição da Pec das Comarcas que deu um prazo de oito anos para que as Defensorias estivessem atuando em todas as varas brasileiras, ainda há muito a avançar. "Falta cerca de 40% das comarcas", afirma Rivana.

Segundo a presidente, o Congresso está mais preocupado em aumentar as penas para manter réus e condenados presos e recrudescer as punições. Medidas que, na avaliação de Rivana, não reduzem os índices de criminalidade.

Qual é a principal demanda hoje da Defensoria Pública?

É sempre trabalhar para que a gente possa estar em todas as comarcas. É a maior demanda de crescimento e de fortalecimento da Defensoria como um todo. E acho que é uma demanda central da Associação também. A Defensoria, como instituição do sistema de Justiça, é mais nova, nasce com a Constituição de 88. Mas a Defensoria nasce sem orçamento suficiente para abranger todo o país, pelo volume de trabalho que é. Então, a cada ano vem crescendo mais, mas ainda não está em todas as comarcas do país para que a gente possa dizer que todos têm acesso à Justiça.

Em 2014, foi aprovada a Pec das Comarcas, para prever a ampliação da Defensoria. Em oito anos, era para ter Defensoria em todas as comarcas. Como está?

O número de defensores dobrou, cresceu bastante nesse período, mas é claro que ainda não está em todas as comarcas. Até porque o próprio Poder Judiciário também foi crescendo. Novos desafios vão surgindo. Então, para atingir essa meta, que foi estabelecida em 2022, falta cerca de 40% das comarcas. Agora, o que acontece sem defensor fixo no local é que a Defensoria ampliou outros modos de atuação para que não haja desassistência total em determinada localidade. Passou a trabalhar com itinerantes, como a gente chama, onde o defensor vai uma vez na semana fazer esse atendimento. E também com a virtualização. O atendimento, que era só presencial, agora é presencial e virtual. Então, tem lugares onde acabamos chegando por meio de um canal de atendimento virtual. Não é o ideal, pois a gente defende que precisa ter defensores em cada uma dessas comarcas, mas já ampliou bastante esse atendimento.

Quais são as áreas vulneráveis que demandam mais esse crescimento da Defensoria?

O criminal acaba sendo uma demanda muito grande da Defensoria, com presença muito extensa e uma necessidade também muito forte. Eu diria que 90% das pessoas que respondem a processos criminais não têm condição econômica de pagar um advogado, então é uma demanda da Defensoria. Se você joga isso para as execuções penais, para as pessoas já encarceradas, poucas têm processo de execução acompanhado por advogados. A presença maciça é da Defensoria Pública. Os dois carros-chefes da Defensoria são o criminal e a família, dois polos opostos que demandam muito. As outras demandas têm sido crescentes pelas crises econômicas: saúde, consumidor, são áreas que têm crescido muito.

E o resultado são condenações injustas…?

Pode acabar levando à injustiça. Pode acontecer isso, infelizmente. A Defensoria mais aparelhada faz com que se consiga fazer mais frente a essas injustiças.

Entre os projetos em tramitação no Congresso relacionados ao Direito Penal, o que lhe preocupa?

De um modo geral, a Defensoria tem a preocupação de que a solução dada no Congresso, muitas vezes, quando se pensa em política de segurança pública, não é, de fato, uma política de segurança pública. É um aumento de pena. Não é um aumento de pena que vai impedir isso. Claro que você não vai melhorar a sensação de segurança só com aumento de pena. Os projetos, quando a maioria deles tramita, são sempre pensando em recrudescimento penal. E as audiências de custódia, comprovadamente, foram um ganho para o sistema, das pessoas serem de fato analisadas, se eram para ficar presas ou não. Mas aí, quando você vê, no Congresso, o caminho é oposto. Pensando em acabar com a audiência de custódia, aumentar a pena, extinguir a progressão de regime, tudo isso acabando com as políticas que seriam para pensar na segurança de maneira macro e melhorar o sistema carcerário como um todo. Não à toa, o STF, quando analisou o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário, colocou lá como uma das coisas a serem feitas o Plano Pena Justa, capitaneado pelo CNJ. A discussão do plano é ver todas essas fases do cumprimento da pena, com grandes audiências públicas realizadas para tentar sair um plano de política pública minimamente executável, para que possamos pensar no futuro em um sistema carcerário melhor.

O fim da saída temporária, a saidinha, foi aprovado no Congresso. Qual a sua avaliação?

Isso prejudica o sistema. Porque, comprovadamente, se você olhar os números... quem sai temporariamente volta. Para sair, ele já está numa fase de cumprimento de pena que permite isso. Esse contato com a sociedade é importante. Se não, vai botar logo prisão perpétua e ninguém vai voltar.

E o aumento da pena para o feminicídio?

Não, não ajuda. Porque é justamente isso. Quando a gente vê o que normalmente a mulher nessa situação de violência precisa, muito mais do que aumento de pena, é o acolhimento de políticas públicas como um todo. Todo o investimento naquilo que chamamos de "Casas da Mulher Brasileira", que não tem... que vai apoiar, vai ter ali incentivo... infelizmente isso é uma realidade. Não que a violência doméstica não atinja todas as camadas sociais, mas a gente sabe que a dependência econômica gera maior dificuldade para a mulher romper. E também a dependência emocional, mas a dependência econômica é algo muito forte para romper o ciclo de violência. Isso não vai se resolver com o aumento da pena. A política, como um todo, precisa ser repensada. Até porque a pena já é depois que o crime foi cometido. O trabalho antes é justamente dar consciência à mulher para que ela possa romper esse ciclo de violência.

Uma questão que demandou muito trabalho da Defensoria foi a defesa dos réus do 8 de janeiro? Qual é a sua avaliação sobre a condução desse processo e as penas, que são severas, altas?

Foi, inclusive, necessária uma força-tarefa, envolvendo até os defensores do Distrito Federal. Porque, em sendo o crime considerado competência federal, a atuação é da Defensoria da União. Mas foi necessário, inclusive, essa cooperação. Os colegas que acompanham os processos falam de alguns exageros nas condenações, considerando quem está sendo defendido ali. E o último, agora que eu escutei recentemente, era um colega dizendo que uma das pessoas que foi presa e condenada, um senhor, que ele ia para o acampamento para assistir ao culto. Aparentemente, não tinha nenhum envolvimento. O que ele fazia era vender rodo. Ele foi condenado. E a multa era de um valor que essa pessoa jamais vai conseguir pagar. Aí vai entrar numa outra questão que a gente fala sobre a pena de multa.

O que acontece?

Hoje, infelizmente tem acontecido que a pessoa cumpre a pena de prisão ou de restrição, ou o que seja que for, e ainda fica com a pena de multa a ser paga, e com isso ela nunca termina de cumprir a pena. E com isso, há todas as consequências de não ter cumprido a pena. Acontecem execuções das penas de multas, que chegam a ser absurdas. De pessoa em situação muito precária, que trabalha com carrocinhas de lixo e é alvo até de busca e apreensão, para poder pagar a multa. Então, são absurdos. Foi absolutamente grave o que foi cometido no 8 de janeiro. Mas uma coisa eram os mandantes, os cabeças. Outras coisas são as pessoas que ficavam ali sem condição econômica. Os colegas da DPU que trabalham nisso se depararam com muitas coisas desse tipo, de gente que, na verdade, estava lá sem saber por que ou com qual motivação de estar lá, mas sem capacidade, até pela questão intelectual, de saber onde estava. Foram muitos exageros como esse.

 


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