Visão do direito

Testemunhas de Jeová e a transfusão sanguínea

"Uma vitória há muito buscada pelas Testemunhas de Jeová e a defesa da liberdade religiosa na qual o desejo do paciente e o respeito à sua crença imperem"

Por Antonio Gonçalves* — É antiga a questão da colisão de direitos fundamentais no tocante à recusa da transfusão de sangue pelos adeptos da religião Testemunhas de Jeová. Qual o cerne da controvérsia? A Constituição Federal (CF) preconiza que todos têm direito à vida, portanto se o médico aceitar a negativa de um familiar na recusa da transfusão estaria ele passível de ser responsabilizado?

Qual a orientação do Conselho Federal de Medicina (CFM) acerca do tema? Em contraposição temos, ainda, o direito à liberdade religiosa, portanto, deve ser respeitada a vontade das Testemunhas de Jeová em recusarem a violação do corpo em decorrência de uma transfusão sanguínea, ainda que a mesma seja indispensável para a mantença da vida.

Perdurou ao longo dos anos o sopesamento dos direitos fundamentais, no qual se questiona o que é mais premente: a vida ou a liberdade religiosa? E não foram poucas as variações de entendimento das cortes brasileiras, ora defendendo o direito à vida, ora à liberdade religiosa. As Testemunhas de Jeová não aceitam transfusões de sangue total ou de seus quatro componentes primários. Elas também não doam sangue nem o armazenam para seu próprio uso para uma possível transfusão. Na visão desses adeptos, segundo o Velho e o Novo Testamento "claramente ordenam a nos abster de sangue".

O que nada obsta a aplicação de tratamentos alternativos, desde que não envolva a inserção de sangue alheio em seus corpos. Agora, em decisão de repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que as Testemunhas de Jeová podem recusar transfusão de sangue por convicção religiosa. Na justificativa dos ministros da Corte temos, além da liberdade religiosa, também, o viés da defesa da dignidade da pessoa humana e, agora, dela que iremos nos ocupar.

Não são poucos os defensores da proporcionalidade para decisão envolvendo a colidência dos direitos fundamentais. Todavia, em nosso entendimento, nesse sopesamento de direitos, a aplicação da proporcionalidade deve obedecer um norte, a fim de analisar qual a medida menos gravosa e a mais adequada e, qual seria? Justamente a adotada pelo STF: a dignidade da pessoa humana, pois é por meio dela que deve se nortear os caminhos e soluções constitucionais.

O direito à vida é soberano, porém como pode uma pessoa que tem sua crença religiosa ser desrespeitada? Em sua consciência não haverá um conflito no tocante à manutenção de sua existência após a violação direta de seus preceitos religiosos? Tanto a CF quanto o CFM tratam do tema da objeção de consciência e autorizam o profissional da saúde a se recusar a fazer procedimentos sob tal alegação. De tal sorte que há a possibilidade de o médico ter seu direito à objeção de consciência, isto é, o ato de se negar a dar prosseguimento a um ato clínico, como por exemplo, fazer uma transfusão de sangue.

O problema é que o CFM e a CF de 1988 estabelecem que o bem maior a ser protegido é a vida, logo sempre que for necessário salvar a vida de um paciente o profissional da saúde não poderá alegar objeção de consciência e se recusar a fazer o ato. É premente a busca por tratamentos alternativos à transfusão de sangue. Na estrita dependência da mesma para a sobrevivência será respeitada a vontade da crença religiosa e não se fará a transfusão, mesmo com o risco claro e concreto da perda da vida.

A decisão de repercussão geral provocará uma necessária adaptação das resoluções do CFM e abre caminho para a aplicação da proporcionalidade com o viés da dignidade da pessoa humana nas decisões das cortes de primeiro e segundo graus com a preponderância da liberdade religiosa. Um precedente se formou e deve ser respeitado, exatamente por isso que a repercussão é geral. Uma vitória há muito buscada pelas Testemunhas de Jeová e a defesa da liberdade religiosa na qual o desejo do paciente e o respeito à sua crença imperem. Que se respeite a decisão do STF e se finalize de vez tão antiga controvérsia.

*Advogado criminalista

 

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