A tendência é que o número de processos nos tribunais brasileiros aumente cada vez mais e, apesar de esforços, o caminho para uma solução é longo. "A curva ascendente não tem perspectivas de qualquer queda ao longo dos anos. Há uma deficiência estrutural e funcional do sistema que persiste por décadas", afirma o advogado André Macedo, ex-desembargador do Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal (TRE-DF), professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB).
Macedo lançou em agosto o livro Cultura de Precedentes e o Papel do Superior Tribunal de Justiça que faz uma reflexão sobre a cultura de precedentes no sistema processual civil brasileiro. O autor é doutor, mestre e bacharel em direito pela UnB, e pós-doutor em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
O advogado cita dados que indicam uma dificuldade para que magistrados sigam precedentes, o que poderia desafogar os tribunais. "Segundo pesquisa da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), 86,7% dos juízes de 1º grau, 91,1% dos desembargadores e 100% dos ministros de Tribunais Superiores concordam que o sistema de súmulas e precedentes vinculantes garante maior velocidade e segurança jurídica à atividade jurisdicional, e consequentemente, maior racionalização do Judiciário". Mas, por outro lado, há um descompasso na prática: "51,8 % dos juízes de 1º grau, 51,3% dos desembargadores e 55,5% dos ministros de tribunais superiores defendem que deveriam poder decidir sem se pautar necessariamente pelo sistema de súmulas e precedentes vinculantes".
O STJ recebe milhares de processos por ano. Como é possível que os ministros consigam analisar detalhadamente as demandas que chegam?
O volume de processos em curso no âmbito do Poder Judiciário brasileiro é elevado e, pelos dados estatísticos, a tendência é aumentar cada vez mais. O mesmo ocorre no Superior Tribunal de Justiça. Dados do STJ, para uma análise comparativa, mostram uma curva que muito preocupa a todos. Em 1990, a média de processos julgados por ano era de 11.742. Em 2020 essa média chegou a 495.497. São 58 processos julgados por dia em 1990 e 2.477 em 2020. Essa crise não é atual. O próprio STJ foi criado com a Constituição de 1988 em razão da crise que passava o STF. Tudo em razão do volume de casos que lá chegavam. Hoje, o próprio STJ (e também o STF) passa por essa mesma crise em razão do volume. Mesmo com a criação de vários instrumentos de racionalização do sistema processual, vindos com a reforma do poder judiciário, reformas nas leis processuais, novo Código de Processo Civil e outros, não se viu uma luz no final do túnel.
Qual o impacto?
Tudo isso, claro, prejudica a prestação jurisdicional e a qualidade das decisões. Os Tribunais, em especial, o STF, STJ, TST, e o Conselho Nacional de Justiça vêm se debruçando e dedicando para a promoção da eficiência e da racionalização do sistema, mas ainda não se chegou na Terceira Margem, parafraseando Guimarães Rosa.
Para dar conta de tantos processos, ministros precisam contar com uma equipe grande, o que pode resultar em irregularidades e vazamentos de informações. Como um magistrado pode se precaver desses problemas?
Não há uma fórmula cirúrgica para evitar irregularidades e vazamentos. Pode-se até dizer que não há um "bafômetro da moralidade" para os servidores. A Constituição Federal, as leis e os códigos de ética trazem as balizas para a conduta dos servidores. São servidores submetidos a concurso público, seguido de cursos de formação, e são pessoas comprometidas que enfrentam o dia a dia com metas pesadas; inclusive, com esse volume crescente de processos. Assessores e auxiliares têm a confiança dos magistrados, mas exceções ocorrem. E os Tribunais e Órgãos têm sido assertivos e eficientes na investigação e abertura de processos para a devida apuração de responsabilidades.
Seu livro aborda a cultura de precedentes. O que o senhor analisou?
O livro é fruto de pesquisa de pós-doutorado realizada na Faculdade de Direito da UERJ. Em síntese, o trabalho procurou analisar: (i) a busca pela efetividade jurisdicional desde a lei dos recursos repetitivos de 2008 e a implementação do filtro de relevância no STJ; (ii) o aprimoramento do uso da Inteligência Artificial no Poder Judiciário, embora se conclua que o olhar atento dos julgadores e servidores não poderá ser substituído pelas facilidades da IA. A máquina não poderá substituir a razão e a sensibilidade dos julgadores. Um robô poderá até ler Machado de Assis ou Guimarães Rosa, mas nunca conseguirá interpretá-los. É um caminho sem volta; (iii)um repensar do ensino do direito processual (seja nos programas das disciplinas, no pensar do método de ensino, no fomento dos grupos de pesquisa etc), ou seja, um redesenho do ensino do direito processual; (iv) o atual quadro da teoria de precedentes no sistema brasileiro e a demonstração que ainda não se conseguiu encontrar um caminho para construir as bases para um sistema de precedentes, como, por exemplo, as divergência do caráter vinculante, seja horizontal ou vertical; (v) o papel e os desafios do CNJ no fomento da cultura de precedentes e o papel do STJ na promoção do diálogo constante com os TRFs e TJs para medirem as incongruências nas interpretações da legislação federal que colidem com a isonomia e segurança jurídica; (vi) o diálogo com essas Cortes Federais e Estaduais e a sua organicidade interna para estruturar e alinhar esses entendimentos destoantes; (vii) no CNJ, uma moldura mais ampla, pois além de abarcar e receber essas informações consolidadas do STJ, o papel do Conselho em estruturar em seus bancos de dados e em seu Departamento de Pesquisa as incongruências com as interpretações da legislação trabalhista pelo TST e o STF e da mesma forma, o papel do CNJ para mediar as incongruências entre o STJ e o STF.Toda essa abordagem e análise na pretensão de alinhar de forma prospectiva a problemática a ser enfrentada na racionalização do sistema processual brasileiro, na busca pela eficiência e para a concretização de uma cultura de precedentes.
Em geral, juízes e desembargadores respeitam as decisões dos tribunais superiores?
Segundo pesquisa da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) 86,7% dos juízes de 1º grau, 91,1% dos desembargadores e 100% dos ministros de Tribunais Superiores concordam que o sistema de súmulas e precedentes vinculantes garante maior velocidade e segurança jurídica à atividade jurisdicional, e consequentemente, maior racionalização do Judiciário. Por outro lado, veja o descompasso, 51,8 % dos juízes de 1º grau, 51,3% dos desembargadores e 55,5% dos ministros de tribunais superiores defendem que deveriam poder decidir sem se pautar necessariamente pelo sistema de súmulas e precedentes vinculantes; e revelam ainda que o sistema afeta a independência do juiz em sua interpretação das leis e em sua aplicação.
Qual seria, na sua opinião, a melhor forma de reduzir o número de processos nos tribunais superiores?
Não existe a melhor fórmula, mas possíveis caminhos para essa redução. E essa busca não é de hoje, como dito acima. Há muito vive o processo civil brasileiro uma crise estrutural. E pouco se fez e se faz para a racionalização desse sistema. Há o esforço de muitos atores, mas, na essência, vivemos uma reprodução e repaginação de um modelo cuja mecânica não traz uma resposta rápida e efetiva aos jurisdicionados. A essência desses debates tem de ter como foco a crise do sistema. Muito se debateu para se chegar ao Código de 2015, mas o volume de processos e os recursos nos Tribunais Superiores só crescem. A curva ascendente não tem perspectivas de qualquer queda ao longo dos anos. Há uma deficiência estrutural e funcional do sistema que persiste por décadas. OCNJ, como órgão responsável pelo planejamento estratégico do Poder Judiciário também tem um papel fundante nessa redução, seja na promoção de pesquisas qualitativas e quantitativas, seja no diálogo entre os Tribunais de modo a racionalizar os temas e definir instrumentos que possam auxiliar nesse propósito.
Acha que aumentar o número de ministros seria uma solução?
Há estudos e debates nesse sentido, assim como projetos no Congresso Nacional. Como o número de processos é crescente, mesmo dobrando o número de ministros no STJ, por exemplo, a crise continuará. Como se diz, não há fórmula mágica, mas é uma reflexão importante. Pessoalmente, não entendo que seja a solução e nem mesmo uma medida imediata.
Quais são os desafios dos magistrados que atuam nos tribunais superiores?
Entendo que o maior desafio seja lidar com o volume de processos hoje e com a curva crescente, aliando qualidade e eficiência. Esse é o maior desafio, pois o número de processos só aumenta, conforme dados estatísticos comprovam. Outro desafio é buscar alternativas para a racionalização do sistema. Esse esforço vem sendo feito pelos Presidentes dos Tribunais Superiores, pelo CNJ e na concretização de medidas para essa racionalização, mas o caminho é longo.
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