Visão do Direito

A interconexão entre a lavagem de dinheiro e os crimes ambientais

"Essas práticas criminosas normalmente vêm acompanhadas da falsificação de licenças, utilização de interpostas pessoas, transferências de titularidade fictícias e operações de compra e venda simuladas"

Rita Machado e Juliana Malafaia -  (crédito: Arquivo pessoal)
Rita Machado e Juliana Malafaia - (crédito: Arquivo pessoal)

Por Rita Machado e Juliana Malafaia* — Nos últimos anos, o mundo tem testemunhado um aumento alarmante dos crimes ambientais e, especificamente no Brasil, o cenário não é diferente. Embora os incêndios sejam os que atualmente chamam maior atenção, o desmatamento ilegal, o tráfico de animais, a pesca predatória, a poluição, a exploração do ouro, entre outros, causam igualmente danos ao meio ambiente, à fauna e à flora.

Paralelamente, destaca-se a lavagem de dinheiro — um processo complexo que visa a reintegração de valores obtidos de forma ilícita na economia formal sob a aparência de licitude. Esse destaque se dá porque, segundo estudo publicado pelo Instituto Igarapé, em 2018 os crimes ambientais tornaram-se a terceira atividade criminosa mais lucrativa do mundo, ficando atrás apenas do tráfico de drogas e do contrabando.

Enquanto habitats e ecossistemas são destruídos, a vida selvagem é morta e recursos preciosos são saqueados. Essas práticas criminosas normalmente vêm acompanhadas da falsificação de licenças, utilização de interpostas pessoas, transferências de titularidade fictícias e operações de compra e venda simuladas.

Assim, embora esses dois fenômenos possam parecer distintos à primeira vista, uma análise mais aprofundada revela uma interconexão complexa entre eles. Nesse sentido, o relatório de 2022 do GAFI (Grupo de Ação Financeira), que visa à prevenção da lavagem de dinheiro, estimou que os crimes ambientais geram entre US$ 110 bilhões e US$ 281 bilhões em ganhos criminais anualmente. Não é difícil perceber que a criminalidade relacionada ao uso de recursos naturais transformou-se em uma economia paralela altamente rentável, atraindo a lavagem de ativos para esse setor.

Ainda de acordo com o Instituto Igarapé, as condições estruturais das sociedades que vivem na região amazônica facilitam a diversificação da coleta de dinheiro ilegal pelos criminosos, visto que essas comunidades dependem majoritariamente de meios de troca difíceis de serem rastreados, como o ouro e o dinheiro em espécie. Além disso, o transporte de dinheiro em espécie através das fronteiras, o uso do ouro como "moeda de troca" e o controle insuficiente nas fronteiras geram mais vulnerabilidades.

Outra atividade comum no ciclo da lavagem de ativos é a extração de madeira ilegal. Por ser de difícil rastreamento, a madeira explorada ilegalmente pode ser "lavada" de diversas maneiras — com a ajuda de licenças ambientais falsificadas, concessões legais, licenças de transporte ou declarações fraudulentas, tudo com o intuito de maquiar a origem ilícita do produto. Ou seja, a mistura da madeira ilegal com a legal permite às organizações criminosas utilizarem estruturas societárias e companhias de fachada para facilitar a integração dos recursos obtidos no sistema financeiro.

Já a extração de minérios ilegais destaca-se não apenas pelo valor inerente aos metais, que constituem ativos financeiros autônomos, mas também por permitir o cometimento de ilícitos em todas as etapas de seu processamento. Desde a extração em terras indígenas ou áreas protegidas, passando pela documentação falsa sobre sua origem até a própria comercialização dos minérios.

Não se pode ignorar os impactos negativos da lavagem de dinheiro na degradação ambiental. O desvio de recursos naturais de áreas protegidas e a destruição ambiental em larga escala levam à destruição do bioma, da biodiversidade e das culturas e modos de vida tradicionais da região.

A título de exemplo, em agosto de 2022, o jornal The New York Times veiculou reportagem revelando a existência de mais de 1.200 pistas de pouso clandestinas identificadas dentro de territórios indígenas e áreas proibidas da Amazônia, criadas para o escoamento da produção da exploração ilegal de ouro na região. Não é preciso muito esforço intelectual para compreender que o escoamento ilegal do ouro será todo lavado, e o valor correspondente será reinserido na economia. Não fosse para reintegrar o lucro obtido com a comercialização, não haveria motivos para que as pistas de pouso clandestinas ali se instalassem.

Isso ocorre porque o sistema de monitoramento da atividade de extração e comércio de ouro no país é altamente falho, quando não inexistente. A cadeia de exploração e comercialização do metal é concentrada em poucos atores e está sujeita a um conjunto de resoluções que se mostram incapazes de garantir o monitoramento adequado ou de impedir que o ouro "sujo" seja escoado para os mercados nacional e internacional com aparência de licitude.

Embora tenham sido feitos progressos significativos na elaboração de leis e regulamentos para enfrentar esses crimes, ainda existem muitas lacunas nas legislações nacional e internacional. Além disso, os órgãos de aplicação da lei enfrentam uma série de desafios na investigação e persecução desses crimes, incluindo a falta de recursos e a complexidade das transações financeiras envolvidas.

Medidas para fortalecer a prevenção, a detecção e a punição da corrupção, da lavagem de dinheiro e da lavagem de ativos ambientais são urgentes e fundamentais, assim como o aprimoramento da capacidade operacional para fechar as lacunas que permitem que os criminosos atuem impunemente, numa abordagem que eleve a natureza à condição de sujeito de direito.

Além disso, são necessários esforços adicionais para melhorar a cooperação internacional e aumentar a transparência nos setores afetados. Os países precisam desenvolver e aprofundar parcerias transfronteiriças para enfrentar eficazmente essa interconexão. Parece não haver dúvidas de que somente através de esforços conjuntos e abordagens integradas será possível proteger efetivamente o meio ambiente e promover a justiça ambiental em escala global.

Não custa lembrar que a destruição ambiental é irreversível.

 *Advogada criminalista

**Advogada criminalista. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e da Comissão de Jogos da OAB/DF

Tags

Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Ícone do whatsapp
Ícone do telegram

Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br

postado em 10/10/2024 03:05
x