Visão do direito

A CLT e a Justiça do Trabalho como agentes de equilíbrio nas relações sociais

"A regulação e proteção do trabalho são um fator essencial para a dignidade humana, assim como para o progresso econômico das sociedades modernas, as quais superaram, no último século, o laissez-faire individualista, antes predominante em todo o mundo ocidental", diz o ministro Aloysio Corrêa da Veiga, presidente do TST

Ministro Aloysio Corrêa da Veiga, eleito presidente do TST para o biênio 2024-2026  Divulgação/Bárbara Cabral -  (crédito: Divulgação/Bárbara Cabral)
Ministro Aloysio Corrêa da Veiga, eleito presidente do TST para o biênio 2024-2026 Divulgação/Bárbara Cabral - (crédito: Divulgação/Bárbara Cabral)

Por Aloysio Corrêa da Veiga*— O início do século XX marcou um período de intensa ebulição social, com a luta pela formação de uma sociedade mais equânime e justa, para que a prosperidade alcançasse todos os segmentos da população. Isso ocorreu em países mais industrializados, onde as sucessivas revoluções tecnológicas levaram a um crescimento exponencial da produtividade, ao mesmo tempo em que a reivindicação coletiva sindical e a ação regulatória estatal elevaram o patamar daqueles economicamente mais frágeis. Foram fatores que fortaleceram a classe consumidora, estimulando prolongados ciclos de crescimento econômico, que viabilizaram, por exemplo, o chamado American Dream, nos Estados Unidos, ou o Estado do Bem-Estar Social, na Europa ocidental.

A regulação e proteção do trabalho são um fator essencial para a dignidade humana, assim como para o progresso econômico das sociedades modernas, as quais superaram, no último século, o laissez-faire individualista, antes predominante em todo o mundo ocidental.

É nesse contexto que surgiram tanto a Consolidação das Leis do Trabalho como a Justiça do Trabalho, com a nobre missão de trazer paz social e equilíbrio às relações jurídico-econômicas entre empregados e empregadores, acelerando o processo de industrialização, então ainda incipiente, e a elevação geral dos níveis de prosperidade. Podemos dizer que tais instituições foram e são bem-sucedidas, já que ajudaram a conduzir o país, nessas mais de oito décadas, de uma economia agrária baseada em monoculturas de exportação para uma sociedade industrial e diversificada, figurando entre as oito maiores economias do mundo, com alguns períodos de pleno emprego.

A regulação do trabalho, no Brasil e no mundo, não é obra do acaso, nem foi outorgada de forma gratuita. Constitui, na realidade, a sabedoria acumulada em mais de dois mil anos de avanços e retrocessos em nossas sociedades.

Passamos de economias escravocratas, na Antiguidade, para o feudalismo servil, na Idade Média, cujo progressivo afrouxamento, na Europa, deu origem à reurbanização e à ampliação da mão de obra artesã livre, ao mesmo tempo em que a conquista de vários territórios coloniais deu ensejo às chagas da escravidão africana. O trabalho livre, todavia, existia verdadeiramente apenas para aqueles que eram donos de suas oficinas, de seus meios de produção, já que os trabalhadores subordinados viviam também sob regime de servidão ou, no máximo, de aprendizagem - podendo, todavia, eles próprios tornarem-se mestres e proprietários das oficinas, perpetuando o sistema.

Tal paradigma, entretanto, entrou em crise com a Revolução Industrial, nos séculos XVIII e XIX, na Europa, com a massiva aglomeração de trabalhadores e a necessidade de uma regulação mais específica e eficaz para as relações jurídicas atinentes ao trabalho subordinado.

No Brasil, o uso em larga escala de trabalho livre inicia-se com a tardia abolição da escravatura e com a massiva imigração europeia. Entre 1884 e 1920, mais de 3 milhões de estrangeiros desembarcaram no Brasil, mais da metade em São Paulo, não apenas nas fazendas de café, mas agora também em empregos urbanos, na nascente indústria e no comércio. Tal forte influxo de operários vindos de fora veio acompanhado de ideias de organização e reivindicação coletiva de condições mais dignas de trabalho - que já estavam mais desenvolvidas no Velho Continente - gerando pressão sobre empregadores e sobre o governo, a fim de se chegar a um modelo justo e eficiente.

É nesse contexto - diante da necessidade de se evitar a convulsão social e promover um ambiente produtivo próspero e equilibrado - que são cunhadas as primeiras leis trabalhistas no Brasil, culminando na Consolidação das Leis do Trabalho, editada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Entre tantas conquistas amalgamadas em nossa CLT, um de seus principais avanços foi estabelecer métodos simples e rápidos de solução de conflitos, com foco na simplicidade, oralidade, conciliação e na limitação dos recursos, resultando em uma efetiva aplicação do direito material e na consequente pacificação dos conflitos.

Por outro lado, para propiciar um foro adequado para a aplicação dessa nova legislação, foram progressivamente criados órgãos decisórios específicos. Em 1923, surge o Conselho Nacional do Trabalho (CNT), inicialmente como um órgão consultivo do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (Maic), que mais tarde seria transformado em Tribunal Superior do Trabalho. Em 1932, são criadas as Comissões Mistas de Conciliação (para conflitos coletivos) e as Juntas de Conciliação e Julgamento (para conflitos individuais), mas ainda sem poderes jurisdicionais para executar suas decisões. Apenas em 1º de maio de 1941, com a entrada em vigor do Decreto-Lei 1.237/1939, passa a existir propriamente uma "Justiça do Trabalho", como órgão julgador autônomo, podendo executar suas próprias decisões, sendo formalmente integrada ao Poder Judiciário, conforme os artigos 122 e 123 da Constituição de 1946 (no seu Capítulo IV, relativo ao Poder Judiciário).

A própria gênese da CLT e da Justiça do Trabalho, como instrumentos para dirimir os candentes conflitos então existentes e conferir estabilidade e prosperidade à nação, leva-nos à convicção sobre sua reiterada atualidade para o enfrentamento dos litígios naturalmente decorrentes das novas dinâmicas de trabalho, em uma sociedade cada vez mais tecnológica e multifacetada.

Afinal, como premissas de tal enfrentamento, incidem os vetores que norteiam a aplicação de todo o Direito pátrio, como a dignidade da pessoa humana e o equilíbrio entre os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, fundamentos da nossa República (CF, art. 1º, III e IV), a qual tem como objetivos erradicar a pobreza e promover o bem de todos (art. 3º, III e IV).

Assim, faz-se especialmente importante examinar os novos fenômenos à vista da necessidade de equilibrar a adaptabilidade aos novos fatos sociais com a preservação do valor humano, base da nossa Constituição.

Temos vivido uma vertiginosa sucessão de revoluções tecnológicas, as quais frequentemente são disruptivas, gerando alguns prejuízos imediatos, mas ganhos coletivos a médio e longo prazo. Basta ver que ninguém, na atualidade, cogitaria o retorno ao status quo ante em relação a tais inovações.

Em um passado recente, por exemplo, tivemos a mecanização das lavouras, a passagem da máquina de escrever ao computador, à internet, ao GPS, à nuvem, ao smartphone, ao trabalho por aplicativos, ao teletrabalho e, mais recentemente, à inteligência artificial - sempre colocando o aplicador do Direito diante de dilemas, já que a realidade tem mudado mais rapidamente que o correspondente regramento legal.

O Poder Judiciário (e, em especial, a Justiça do Trabalho, uma vez que lida com causas urgentes) deve prestar um serviço jurisdicional cada vez mais célere e eficiente, conferindo um tratamento justo, isonômico e tempestivo aos novos conflitos sociais.

Para tanto, temos de nos unir em uma reflexão sobre as melhores formas de atingir tal desiderato, racionalizando a atuação de nossos Tribunais, conferindo segurança jurídica para que nossa sociedade possa, no campo das relações de trabalho, prosperar e progredir.

Entre tais reflexões, o aprimoramento da prestação jurisdicional trabalhista, na atualidade, deve pautar-se pela modernização de nossa maneira de julgar, com a adesão a uma cultura de precedentes, intensificando o uso dos diversos mecanismos já presentes em nossa legislação, que conferem aos Tribunais de vértice uma maior efetividade para firmarem teses que possam servir de paradigma seguro e isonômico para o sistema judiciário e para a sociedade. Tal racionalização do trabalho jurisdicional, na atualidade, passa ainda pelo emprego de soluções tecnológicas que racionalizem o tempo despendido em atividades acessórias e viabilizem uma maior eficiência no recebimento e tratamento dos processos. Finalmente, tem-se que a contínua melhoria do serviço jurisdicional passa pela ampliação do diálogo e da cooperação, seja pelo fomento das soluções negociadas, seja por uma maior cooperação interna, entre os Tribunais, assim como por uma cooperação interinstitucional com os principais litigantes do país, ajustando políticas de desjudicialização e outras formas de abreviação das demandas, reduzindo custos e aumentando a efetividade.

Diante de tal quadro, é de se reafirmar a atualidade da regulação do trabalho no Brasil, bem como a aptidão da Justiça do Trabalho para efetuar a interpretação e adaptação das normas às novas realidades, potencializadas pela sucessão de novas tecnologias.

O Direito é produto de nossa história e, ao mesmo tempo, ajuda a moldá-la. Por meio do diálogo social, travado em um Judiciário célere e eficiente, poderemos aferir adequadamente o Direito aplicável às relações de trabalho da atualidade, empenhados em instrumentos que permitam prosperar, influenciando positivamente as relações sociais e econômicas em nosso país, maximizando avanços e evitando retrocessos na proteção aos direitos humanos, finalidade última de nossa Constituição e do Poder Judiciário como um todo.

 *Ministro e presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST)

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postado em 10/10/2024 06:00
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