Por Marilia Milani*— Ativos virtuais geram interesse e impulsionam grandes discussões no mercado financeiro. No mundo jurídico, a discussão vem ganhando cada vez mais espaço nos círculos de debate, diante da maior abrangência e facilidade de obtenção e movimentação desses ativos, sobretudo se for uma criptomoeda e/ou criptoativo.
Há necessidade de que a discussão vá além do entendimento técnico sobre a forma de aquisição, transferência, funcionamento e seus impactos, alcançando discussões do ponto de vista jurídico. Um exemplo é a questão da natureza jurídica de uma criptomoeda. A análise jurídica dos diversos aspectos que envolvem uma operação é essencial para que se assegurem os direitos e deveres das pessoas físicas e jurídicas envolvidas.
O entendimento e conhecimento do ponto de vista jurídico viabilizam o adequado enquadramento desses ativos nos termos da legislação e regulamentação já existentes. Obviamente, os impactos da correta conceituação jurídica são diversos e afetam as relações cotidianas daqueles que operam com ativos virtuais, desde aspectos básicos, como a Declaração de Imposto de Renda, até situações mais complexas, como a propositura de ação judicial envolvendo um ativo virtual, o que facilita a escolha da melhor via processual para a tutela do direito.
O art. 3º e seus incisos da Lei 14.478/2022 dispõem que ativo virtual é "a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento", que não seja moeda nacional ou estrangeira, moeda eletrônica, pontos de fidelidade e/ou valores mobiliários. As criptomoedas e os criptoativos se encaixam nessa definição.
A definição dada pela lei, corroborada pelo Glossário referendado pela CVM, deixa claro que criptomoedas e criptoativos são representações de valor que não podem ser equiparadas a uma série de outros conceitos.
Do ponto de vista jurídico, criptomoeda/criptoativo é a representação digital de valor que pode ser transacionada por meios eletrônicos, tanto para fins de pagamento quanto para investimento. Essa caracterização nos leva à seguinte reflexão: no caso de perda de uma determinada criptomoeda, por culpa ou dolo de terceiro, qual deveria ser o tratamento jurídico aplicado: o de obrigação de dar, obrigação de fazer ou obrigação de não fazer?
A obrigação de dar (Art. 233 a Art. 246 do Código Civil) consiste no comprometimento de uma parte de entregar uma coisa móvel ou imóvel para outra, seja para restituir o bem ao seu legítimo titular, seja para constituir um novo direito. A obrigação de dar coisa certa é uma obrigação específica, na qual o devedor deve entregar um objeto determinado, perfeitamente caracterizado e individualizado, que pode ser diferenciado de todos os demais objetos da mesma espécie. O cumprimento da obrigação ocorre com a entrega do objeto determinado ou, caso o bem pereça, com a restituição pecuniária.
A obrigação de dar coisa incerta é aquela indicada pelo gênero e pela quantidade, recaindo a incerteza na determinação genérica e não propriamente na indeterminação. Para o cumprimento da obrigação, é necessário escolher a coisa nos termos contratados ou legais; uma vez feita a escolha, aplica-se o regime de dar coisa certa.
Há divergências doutrinárias sobre a qualificação e o enquadramento exatos da obrigação pecuniária, se seria obrigação de dar coisa certa, obrigação de dar ou obrigação de dar específica. A obrigação pecuniária é a prestação devida pelo devedor em determinado valor monetário, e, de maneira geral, trata-se de uma obrigação de dar.
Já a obrigação de fazer refere-se à conduta do devedor em executar determinada tarefa ou ato, sendo uma obrigação positiva, que pode ser fungível ou infungível. Por outro lado, a obrigação de não fazer é a conduta negativa do devedor, que deve se abster de realizar determinado ato ou tarefa.
Independentemente da modalidade obrigacional envolvida, é comum que não sejam identificadas em sua forma pura nas relações cotidianas. Muitas vezes, uma forma de obrigação complementa outra, abrangendo diferentes prestações do devedor. Apesar das breves e superficiais análises sobre as obrigações, é fácil concluir que o enquadramento jurídico dos ativos virtuais é crucial para a preservação dos direitos de seus detentores e para a garantia do cumprimento dos deveres daqueles que os transacionam.
Vejamos o exemplo de uma pessoa que acredita estar adquirindo uma determinada criptomoeda por meio de intermediação de um terceiro, mas, na verdade, foi vítima de um golpe. Nessa situação, uma vez identificado e responsabilizado o terceiro, quais seriam os limites de sua responsabilização? O devedor (terceiro) deveria indenizar o valor da aquisição ou restituir a coisa certa, ou seja, a criptomoeda adquirida?
E no caso de um credor que formaliza um mútuo a um devedor por meio de transferência de criptoativos, no caso de não pagamento e necessidade de cobrança judicial, qual seria o enquadramento jurídico?
O tema é relativamente recente, e a jurisprudência ainda está se consolidando. Contudo, as respostas para essas perguntas já estão sendo submetidas ao Judiciário, havendo casos em que a ação judicial é instrumentalizada como obrigação de dar, obrigação de fazer ou pagamento de quantia certa.
A valoração do ativo virtual em questão tem grande impacto, dependendo da caracterização obrigacional. Se houver inadimplemento de uma criptomoeda cujo valor hoje é um, mas que, no futuro, pode ser diferente, qual seria a base de cálculo para eventual indenização? O valor da aquisição, o valor na data da propositura da ação judicial ou a devolução da moeda, na sua quantidade e qualidade exatas, caso ela ainda exista?
Essas discussões têm impactos profundos e podem interferir diretamente nas relações comerciais de quem transaciona criptoativos, pois estão diretamente vinculadas às análises dos riscos jurídico-econômicos envolvidos. Por isso, é fundamental aprofundar os conceitos jurídicos sobre o universo dos ativos virtuais, lembrando que os fundamentos e princípios legais já existentes em nosso ordenamento jurídico orientarão as conclusões e decisões judiciais.
*Advogada do escritório Carvalho Borges Araujo CBA Advogados
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