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Visão de Direito: O debate da regulação da inteligência artificial no Senado Federal

Após inúmeras prorrogações de votação na Comissão Temporária de Inteligência Artificial antes do recesso parlamentar em julho, um novo texto será apresentado pelo relator, senador Eduardo Gomes

O debate regulatório avança, e o Senado Federal está próximo de dar um passo importante para a proteção dos cidadãos. -  (crédito: - Pedro França/Agência Senado)
O debate regulatório avança, e o Senado Federal está próximo de dar um passo importante para a proteção dos cidadãos. - (crédito: - Pedro França/Agência Senado)

Por Rodrigo Badaró* e Alisson Possa**— A tecnologia não negocia com o tempo, e é visível o uso e os impactos da inteligência artificial no Brasil e no mundo. O debate regulatório avança, e o Senado Federal está próximo de dar um passo importante para a proteção dos cidadãos: após inúmeras prorrogações de votação na Comissão Temporária de Inteligência Artificial antes do recesso parlamentar em julho, um novo texto será apresentado pelo relator, senador Eduardo Gomes.

O texto original foi elaborado em 2022 por uma Comissão de Juristas renomados no estudo da regulação de novas tecnologias, apresentado em 2023 pelo senador Rodrigo Pacheco e aprimorado pelo senador Eduardo Gomes, relator na Comissão Temporária.

Com essa proximidade, as big techs, gigantes estrangeiras de tecnologia, cerram fileiras em ataques contra o texto, tentando manter o mercado brasileiro livre de limites para sua atuação. Uma das táticas para atacar a proposta está sendo a busca de aliados no setor privado e até mesmo na sociedade civil, para caracterizar o processo de construção da estrutura legal como sendo não participativo.

Cabe destacar que os interesses das gigantes de tecnologia muitas vezes não estão alinhados com os interesses do setor privado brasileiro, pois elas possuem os algoritmos mais avançados do mundo e uma capacidade financeira descomunal. Uma das suas estratégias comerciais é a venda de acesso para empresas de outros países. Assim, há uma relação econômica desequilibrada, já que elas ditam os termos que deverão ser aceitos pelos empreendedores brasileiros. Não é raro, para quem atua no segmento, encontrar minutas de contratos em que uma big tech fornece acesso a algoritmos para treinamento com base de dados redigidos em inglês, com a escolha de jurisdição para a discussão dos termos contratuais nos Estados Unidos e com cláusulas que podem acabar por prejudicar o negócio do empresário brasileiro a longo prazo, como a possibilidade de transferências de dados para terceiros sem especificar quem são.

O Senado Federal agiu corretamente, promovendo transparência e, principalmente, ampla participação da sociedade. Em 2023 e 2024, foram realizadas dezenas de audiências públicas com a participação de associações representativas de todos os setores da economia, da academia e do terceiro setor. Cabe destacar a participação, inclusive, de Time'i Awaete, representante do Instituto Janeraka, em nome de comunidades indígenas, no dia 25/10/2023, que expressou preocupação com a extração de matéria-prima na Amazônia para a cadeia de produção de dispositivos de tecnologia, o que resultou em inserções para a proteção do meio ambiente.

Destacam-se alguns pontos de preocupação em comum: (i) a estrutura de IAs de alto risco; (ii) a previsão de um novo regime de responsabilidade civil; (iii) a criação de uma autoridade reguladora sem a participação de autoridades setoriais; (iv) a ausência de estímulos para pesquisa e desenvolvimento, principalmente para startups e pela academia; (v) a falta de previsões voltadas para a proteção do mercado de trabalho; e (vi) a inexistência de proteções para direitos autorais na coleta e uso de dados para o treinamento de IAs.

Com efeito, considerando essas preocupações, um substitutivo foi apresentado pelo relator, no qual foram observadas as seguintes mudanças: (i) substituição de um rol de tecnologias de alto risco por critérios a serem fixados por uma autoridade competente; (ii) mudança no regime de responsabilidade civil; (iii) criação de um sistema para a regulação do tema com a participação de órgãos reguladores setoriais, sob a coordenação de uma autoridade a ser designada pelo Poder Executivo; (iv) previsão legal para a criação de sandboxes regulatórios para pesquisa e desenvolvimento; (v) medidas a serem tomadas pelo poder público para mitigar o impacto negativo no mercado de trabalho; e (vi) estabelecimento de um regime de proteção de direitos autorais que busca proteger os cidadãos brasileiros contra o uso indevido de suas obras intelectuais e dados não pessoais.

Desde então, a mesma dinâmica foi mantida: um novo texto é apresentado, incorporando sugestões, e novas rodadas de audiências públicas são realizadas para avaliação, além do envio permanente de contribuições. Três relatórios com modificações substanciais foram apresentados entre 07/06/2024 e 04/07/2024, todos de acordo com as demandas das entidades que buscam contribuir.

A liberdade é um direito essencial, e o estímulo à tecnologia e ao desenvolvimento é o que gera riqueza para uma nação. Regular de forma consciente não é neofobia, mas sim uma das principais funções do Estado: estabelecer limites mínimos que preservem o equilíbrio entre os princípios constitucionais. Como diz o antigo aforismo: a liberdade total dos lobos é a morte dos cordeiros.

Por fim, um novo texto deve ser apresentado, e fica evidente a preocupação em estabelecer mecanismos de segurança e transparência, dentro de uma visão participativa de vários agentes. Uma regulação bem construída deixa claro um ambiente favorável ao investimento e ao atendimento das necessidades da população, sem simplesmente retirar liberdades. Cabe ao Senado Federal equilibrar as demandas das empresas internacionais e da sociedade ao estabelecer limites para os possíveis danos dessa corrida tecnológica inevitável, criando regras salutares.

 *Advogado e conselheiro nacionalde proteção de dados (ANPD)

**Advogado e professordo IBMEC Brasília

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postado em 26/09/2024 04:00
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