Entidades da sociedade civil reagiram à tramitação em regime de urgência do Projeto de Lei Complementar (PLP) 192/2023, que propõe alterações significativas na Lei da Ficha Limpa. Aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, depois de passar pela Câmara dos Deputados, a matéria estava a poucos passos de virar lei. Mas a repercussão negativa acabou adiando a comemoração de políticos que pretendem voltar à cena eleitoral com novas regras de inelegibilidade. A discussão ficou para depois do pleito municipal. Entre as entidades que se manifestaram estão o MCCE (Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Em entrevista ao caderno Direito&Justiça, o advogado Luciano Caparroz Pereira dos Santos, membro e cofundador do MCCE, afirma que o projeto de lei em questão atende apenas a políticos que pretendem driblar a Lei da Ficha Limpa. Ele acredita que o texto, de autoria da deputada Dani Cunha (União-RJ), filha do ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, é casuístico e representa um retrocesso.
Presidente do Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, Caparroz participou ativamente da elaboração do projeto e na efetivação da Lei da Ficha Limpa. Agora está em campo para preservá-la. "Efetivamente faltou debate. Não foram criadas comissões especiais, não houve audiências públicas.
E estamos tratando de mudanças em uma lei de iniciativa popular, em que se passou mais de um ano coletando assinaturas, num enorme debate com a sociedade, aprovada na Câmara e no Senado por unanimidade, sancionada pelo presidente da República, com a constitucionalidade discutida no Supremo Tribunal Federal", afirma o advogado eleitoral.
Qual a sua avaliação sobre o Projeto de Lei Complementar que propõe alterações na Lei da Ficha Limpa?
Esse é um projeto de lei que atende somente aos interesses da classe política e daqueles que têm problema com a Lei da Ficha Limpa. Primeiro pela principal autoria na Câmara dos Deputados, a deputada Dani Cunha, filha do ex-deputado Eduardo Cunha, ou seja, já demonstra o interesse pessoal. O projeto é feito todo legislando em causa própria. São os próprios políticos que têm problema com a Lei da Ficha Limpa tentando conseguir uma liberação para poder serem candidatos, o que torna o projeto totalmente comprometido e principalmente com relação à tramitação. Em ambas as Casas — Câmara e Senado — a tramitação tem sido feita em regime de urgência, sem constituir comissão especial, que é o rito normal da Casa e, com isso, com votações virtuais, de forma atropelada, para que o projeto seja implementado atendendo a esses interesses.
Por que, na sua avaliação, o projeto pode desfigurar os principais mecanismos de proteção da Lei da Ficha Limpa, beneficiando aqueles condenados por crimes graves?
O projeto busca desfigurar a Lei da Ficha Limpa porque busca diminui o prazo de inelegibilidade. É preciso lembrar que a Lei da Ficha Limpa trata de crimes graves, hediondos, improbidade administrativa. Todos os casos que comprometem a representação política. A Lei da Ficha Limpa vem exatamente para criar um quadro melhor, beneficiando assim os bons políticos, aqueles que administram de forma séria, que não praticaram crime e que se colocam à disposição da sociedade como representantes dignos, com uma vida pregressa que possa recomendá-los. O objetivo desse projeto, assim como outros que já foram tentados, é desfigurar todo o mecanismo de proteção que a gente tem no sistema que torna inelegíveis aqueles que cometeram crimes.
O argumento de políticos para alterar a legislação é de que a pena de oito anos acaba sendo muito maior porque os processos na Justiça tramitam lentamente e a inelegibilidade vale a partir da condenação em segunda instância. Qual a sua opinião?
Quando se fala que o processo acaba demorando e, com isso, a pessoa pode ficar mais tempo inelegível a gente deve lembrar que os processos tramitam lentamente exatamente pelo manejo de advogados. Os advogados buscam tornar os processos mais longos justamente para evitar a punição daqueles que cometeram crimes. Este argumento não comporta ser acolhido exatamente porque os próprios advogados desses políticos atuam para que os processos não cheguem ao seu final. O que está se tentando fazer é diminuir prazos para punição de crimes. Como está sendo colocado, alguém que foi condenado a oito anos de prisão quando sair da cadeia já estará apto a participar do processo eleitoral.
Acha que essa mudança foi feita sob medida para beneficiar algum político em especial?
Todas essas mudanças são feitas legislando em causa própria. Nós não trabalhamos com a questão individualizada, deste ou daquele candidato, mas com o princípio, com o critério que a lei estabelece para todos, e para todos ela deve ser igual. Aqueles que têm condenações e que têm problemas para enfrentar o processo da disputa eleitoral devem buscar os recursos e tentar resolver as suas pendências.
Faltou debate com a sociedade sobre o tema?
Efetivamente faltou debate. Não foram criadas comissões especiais, não houve audiências públicas. E estamos tratando de mudanças em uma lei de iniciativa popular, em que se passou mais de um ano coletando assinaturas, num enorme debate com a sociedade, aprovada na Câmara e no Senado por unanimidade, sancionada pelo presidente da República, com a constitucionalidade discutida no Supremo Tribunal Federal. Tentam agora fazer uma alteração por meio de alguns deputados e senadores que acabam buscando no corporativismo evitar o alcance da Lei da Ficha Limpa.
Qual a sua opinião sobre os embates truculentos e ataques pesados nos debates da campanha eleitoral de São Paulo?
Acho que isso tem a ver com uma degradação da política e é isso que a gente busca combater. A gente não pode conviver com quadros que colocam um nível tão baixo da campanha, que acabam afastando o eleitor. Com isso, aumenta a abstenção no dia da eleição, a participação dos eleitores. O que a gente tem que buscar é não demonizar a política, melhorando os quadros, mas também colocando uma régua e critérios para que tenhamos bons representantes e que isso possa efetivamente trazer a esperança e a perspectiva do eleitor de que alguma coisa pode ser mudada.
A Lei da Ficha Limpa tromba com a soberania popular nas eleições? Pergunto porque muitos políticos que estão inelegíveis conseguiriam se eleger pelo voto popular mesmo com condenações por crimes graves…
A própria Constituição já prevê inelegibilidades. Quando você pensa o prefeito, o governador, o presidente da República não podem ter como sucessores a mulher, os parentes consanguíneos, e esses não cometeram crime nenhum. Mas não podem participar do processo eleitoral porque têm a questão de não se perpetuar no poder. A democracia exige, inclusive, alternância do poder. Todo esse trabalho é feito para que as eleições sejam limpas, transparentes e que possam ser oxigenadas, possam ser feitas com regularidade. Faz parte da democracia. Quando se usa esse argumento de que a Lei da Ficha Limpa retira a soberania popular, o voto, a gente precisa lembrar que já existem na legislação outras inelegibilidades que impedem que candidatos possam participar do processo eleitoral. Então, não foi simplesmente a Lei da Ficha Limpa que trouxe essa questão da inelegibilidade. A Lei da Ficha Limpa veio regulamentar o que a Constituição já dizia.
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