Entrevista

'Temos a melhor lei de combate à violência doméstica do mundo', diz juíza

Renata Gil, juíza e conselheira do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), comenta os 18 anos da Lei Maria da Penha

Em 8 de agosto, a Lei Maria da Penha completa 18 anos. São quase duas décadas de avanços na defesa da integridade das mulheres, embora casos de agressão e feminicídio continuem a escandalizar a sociedade brasileira, sem distinção de classe social e atinge até mesmo quem tem conhecimentos sobre a Justiça. É o caso, por exemplo, da juíza Viviane Vieira do Amaral — assassinada pelo ex-marido na frente das filhas, na véspera do Natal de 2020 — que hoje dá nome a um prêmio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para experiências na prevenção à violência doméstica. Fundadora do Instituto Nós por Elas, primeira mulher a presidir a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a juíza Renata Gil, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, avalia que o Brasil obteve muitas conquistas e hoje a Maria da Penha pode ser considerada a melhor lei de combate à violência doméstica do mundo. "O seu impacto é imensurável tanto na quantidade de vidas salvas diretamente por meio das medidas protetivas quanto na prevenção de tragédias, considerando-se o seu aspecto pedagógico", afirma a conselheira do CNJ. 

Qual é a sua avaliação sobre o impacto da Lei Maria da Penha?

A Lei Maria da Penha foi e continua sendo um instrumento importantíssimo de combate à violência doméstica e de conscientização acerca do tema no Brasil. É considerada a terceira melhor lei do mundo, atrás apenas da lei do Chile e da Espanha. Mas as alterações na Lei nos últimos dois anos foram tão significativas que já pode ser considerada a melhor do mundo. O seu impacto é imensurável tanto na quantidade de vidas salvas diretamente por meio das medidas protetivas quanto na prevenção de tragédias, considerando-se o seu aspecto pedagógico. Antes da lei, frases como "em briga de marido e mulher não se mete a colher" e "roupa suja se lava em casa" eram o senso comum, a sociedade brasileira evitava o assunto. Com o advento da lei, a violência doméstica ganhou os holofotes, possibilitando uma ampla discussão envolvendo toda a população, bem como a criação de políticas públicas direcionadas a esse combate.

Acredita que há alterações legislativas necessárias para aumentar o rigor contra agressores?

Alterações legislativas para efetuar ajustes são sempre bem-vindas. Especialmente depois de tantos anos de implementação da lei, quando se pode melhor avaliar, por meio de estudos e pesquisas científicas, o que funciona e o que merece reparo. Nesse momento, não tenho certeza se um maior rigor contra os agressores é realmente necessário. A legislação tem funcionado. Acredito que atuar na prevenção e na conscientização da população, especialmente a população mais jovem, seja mais efetivo.

Neste Agosto Lilás, dedicado à conscientização da necessidade de enfrentamento das diversas formas de violência contra a mulher, que medidas o CNJ vai adotar?

Durante todo o mês de agosto, o CNJ, em parceria com os demais atores do Poder Judiciário e dos demais poderes, promoverá palestras e eventos para conscientização e letramento do enfrentamento à violência contra a mulher. Destaque para a 18ª edição da Jornada Lei Maria da Penha, que vai acontecer pela primeira vez na maior favela do Brasil, Sol Nascente, em Brasília. O evento é um espaço de debate sobre os desafios enfrentados pelo Sistema de Justiça na implementação da Lei Maria da Penha e de proposituras de novos caminhos para o seu aprimoramento. Consideramos que o processo de educação é o mais relevante para alteração da realidade da violência contra a mulher, meninas e crianças no Brasil. Nesse mês, pela primeira vez, o CNJ vai fazer uma ação para meninas e mulheres no Marajó. Ainda em agosto, ocorre o julgamento dos trabalhos submetidos ao IV Prêmio CNJ Juíza Viviane Vieira do Amaral, que tem por finalidade contemplar atividades, ações, projetos, programas, produção científica ou trabalho acadêmico que contribuam para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher.

Acha que as mulheres precisam se conscientizar de que o agressor não muda e a situação só se agrava?

Então, este é um ponto em que precisamos avançar. Não sei se podemos afirmar que o agressor não muda. Isso seria negar o caráter de ressocialização que toda pena possui. É claro que, em um primeiro momento, na iminência da violência, encorajar essa mulher para que possa romper o ciclo de violência imediato e seguir com a sua vida é a diretriz principal na quase totalidade dos casos. Ocorre que temos de olhar também para esse agressor e, como Estado, oferecer ferramentas para que ele também possa romper com o ciclo de violências na sua vida. Após cumprir sua pena, ele voltará à sociedade. Com o simples encarceramento, seja por quanto tempo for — lembrando que não há prisão perpétua no Brasil — ele voltará a repetir a violência com outras mulheres. A ressocialização desse agressor é medida essencial para a convivência com os filhos do casal, eventualmente. O CNJ tem muita preocupação com os grupos de reflexão que já são projetos-piloto em vários Estados do Brasil e com a criação de uma Vara Especializada em cumprimento dessas medidas, que vai tratar do agressor de uma forma muito particular.

O feminicídio é um crime difícil de combater por ocorrer, muitas vezes, dentro de casa. Temos a impressão que os casos só aumentam. Existe uma luz no fim do túnel?

Claro que existe, mas não é fácil. A clandestinidade desses crimes é uma característica que torna realmente difícil a apuração, não impossível. Segundo pesquisas recentes, de janeiro a maio de 2024, a cada minuto uma medida protetiva é concedida. Isso indica que as pessoas estão procurando a Justiça e estão se sentindo confiantes na resposta que o Estado vai dar nessas causas. Com uma polícia e um Judiciário mais preparados, atuando a partir da perspectiva de gênero, conforme dita a Resolução CNJ 492/2023, os casos conseguem chegar a uma elucidação. A impressão de que os casos só aumentam acredito que se deva a uma maior visibilidade da causa. Como dito antes, havia um pacto social de silêncio, havia muita vergonha em denunciar. Além disso, na grande maioria dos casos, a dependência financeira dessas mulheres também pesava na balança na hora de denunciar. Com o aperfeiçoamento das medidas protetivas, a elaboração de políticas públicas de conscientização e acolhimento dessas mulheres vítimas e um maior engajamento social na causa, os casos estão vindo à tona e estão sendo solucionados. Havia uma demanda represada.

Com a sua experiência na magistratura, pode explicar o que faz um homem assassinar a própria mulher, mesmo sabendo que pode ser condenado a penas altas de prisão?

Essa é uma pergunta que eu sempre me faço. Acho que é um senso de permissão. Em algum lugar os homens ainda nutrem um sentimento de posse pelas mulheres e legitimam essa violência máxima como uma forma de exercício de poder anacrônica. É esse machismo, essa misoginia que ainda segue encrustada na nossa sociedade. Tem mudado, mas não na velocidade que precisamos.

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