Visão do direito

Entidades filantrópica e sem fins econômicos não são sinônimos

No parágrafo 9º do art. 899, a CLT determina que o valor do depósito recursal será reduzido pela metade para as entidades sem fins lucrativos, entre outros tipos de organizações

Por Ana Gabriela Millo* — As ações trabalhistas que tramitam nos TRTs país afora têm, via de regra, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) como referência. Esta é, claramente, a "Bíblia" das relações entre empregador e empregado. Mas, ainda que tenha uma grande relevância para o segmento, consegue provocar divergências no que se refere à distinção entre entidades sem fins econômicos e entidades filantrópicas.

O conflito se inicia na diferença que a CLT emprega entre os dois modelos de organização, ao tratar dos depósitos recursais, que são valores que devem ser depositados pelo empregador, quando deseja recorrer de uma decisão que lhe foi desfavorável, em sede de uma ação trabalhista. O depósito serve como garantia de que, se mantida a decisão em desfavor do empregador, o valor depositado será usado para pagar parte do que foi concedido ao empregado.

No parágrafo 9º do art. 899, a CLT determina que o valor do depósito recursal será reduzido pela metade para as entidades sem fins lucrativos, entre outros tipos de organizações. Já o parágrafo 10º isenta do depósito as entidades filantrópicas. E aqui começa um problema de interpretação que comumente enfrenta o Judiciário. Isso ocorre porque há divergências sobre o que é uma organização filantrópica e o que seria uma entidade sem fins lucrativos, interferindo, assim, na responsabilidade de uma OSC em relação ao depósito recursal.

Uma das correntes que trafega pelos corredores dos TRTs diz que filantrópica é aquela entidade que sobrevive de doações, e atua em prol do bem ao próximo. Para os defensores dessa tese, um hospital que atende pelo SUS, por exemplo, não poderia ser considerado entidade filantrópica, porque recebe contraprestação do Poder Público para prestar esse serviço. Uma segunda linha de entendimento sugere que uma entidade filantrópica é aquela que possui a Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social (Cebas).

A questão é que, aos olhos da lei, não há um conceito jurídico que determine o que é uma entidade filantrópica e o que não é, e qual é a diferença entre ela e uma entidade sem fins econômicos. Entidades sem fins econômicos, para nós, é gênero, o qual contém como uma das espécies as entidades filantrópicas.

Valemo-nos, quanto à fonte de receita das entidades sem fins econômicos, das explanações do advogado Tomáz de Aquino Rezende, presidente da Confederação Brasileira de Fundações (Cebraf) e referência nacional sobre as legislações do Terceiro Setor. Para ele, é desejável que essas entidades desenvolvam atividades econômicas para gerarem sua própria receita, a fim de contribuir para sua sustentabilidade, destacando que a finalidade dessas instituições não se confunde com as atividades que elas exercem.

No que se refere à entidade filantrópica, entendemos como tal aquela que, além de ser sem fins econômicos, constitui-se com o animus de fazer bem ao próximo, independente de obter receitas externas, as quais devem ser revertidas em prol da instituição. Isso se vê com clareza nas áreas da saúde, educação e assistência social em sentido estrito.

Por outro lado, uma associação de bairro, embora seja sem fins lucrativos, não pode ser considerada como filantrópica, pois é criada para defender os interesses de uma comunidade específica e não para ofertar à sociedade serviços ligados a direitos fundamentais, como as áreas citadas acima. Neste caso, a associação de bairro é uma organização sem fins econômicos, o que a enquadraria no parágrafo 9º do Art. 899. Já uma entidade que se presta a oferecer serviços em áreas sensíveis como a saúde, a educação ou a assistência social, que demanda receita, mas que também não visa à distribuição entre terceiros, pode, sim, ser interpretada como filantrópica.

É difícil a adoção desse entendimento de que as filantrópicas devem sobreviver apenas por meio de doação, uma vez que viabilizam serviços geralmente caros e inacessíveis à população mais necessitada. Interpretações desse tipo podem dificultar a própria existência das organizações filantrópicas, que têm papel crucial na prestação de serviços sensíveis à população.

É preciso ressaltar que toda a receita alcançada pelas entidades sem fins econômicos é absorvida em favor do seu próprio desenvolvimento, sendo fundamental para as filantrópicas, servindo-lhe como suporte para expandir sua rede de atendimento à população assistida. É digno de elevar suas ações ao mais alto grau de importância para o Terceiro Setor. E, para isso, é preciso que toda a sociedade, o que inclui a interpretação dos julgadores, as estimulem e a resguardem de um colapso.

*Ana é especialista em direito do trabalho, pós-graduada em compliance trabalhista e LGPD, sócia do Escritório Tomáz de Aquino Costa Resende e membro da Comissão de Direitos Sociais e Trabalhistas da OAB/MG.

 

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