Por Rachel Macedo Rocha e Walter Mastelaro — A noção de que a biologia define rigidamente as diferenças entre homens e mulheres tem sido desafiada por estudiosos como Linda Nicholson, que propõe o abandono de generalizações que limitam identidades a corpos padronizados. Nicholson sugere que o corpo deve ser compreendido através de articulações políticas, em vez de normas fixas. Este artigo adota a perspectiva de Nicholson para analisar a polêmica em torno da boxeadora argelina Imane Khelif, durante os Jogos Olímpicos de Paris 2024, e o debate sobre identidade.
Imane Khelif, nascida em 2 de maio de 1999, em Ain Sidi Ali, Argélia, sempre enfrentou desafios significativos para seguir seu sonho no boxe. Desde cedo, contrariando a resistência familiar e as dificuldades financeiras, demonstrou profundo interesse pelo esporte. Sua trajetória inclui a participação nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 e sua nomeação como embaixadora. No entanto, após uma vitória contra uma adversária italiana e uma desqualificação controversa no Campeonato Mundial de Boxe de 2023, surgiram acusações infundadas de que Khelif seria uma mulher trans. Essas acusações, impulsionadas por movimentos de extrema direita, fazem parte de uma campanha para deslegitimar sua presença no esporte.
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A origem dessas acusações está na vitória de Imane contra a adversária italiana, que desistiu da luta após 46 segundos, e na desqualificação de Imane no Campeonato Mundial de Boxe de 2023, organizado pela IBA. A desqualificação, uma decisão controversa e pouco transparente, foi baseada em uma suposta falha da boxeadora em "testes de elegibilidade de gênero". A história de Imane, que poderia ser um exemplo inspirador do poder transformador do esporte em ultrapassar barreiras culturais e sociais, foi distorcida em uma farsa global, utilizada como ferramenta para atacar mulheres e a população LGBTQIA .
Essa perseguição, infelizmente, não é um fenômeno novo. Desde os anos 1980, atletas como a espanhola María Patiño enfrentam discriminação por não se adequarem aos padrões binários de gênero impostos por entidades esportivas. A exigência de testes de feminilidade, como no caso de Patiño, revela como a ciência é utilizada para punir corpos que fogem aos padrões estabelecidos, ignorando as diversidades corporais e impondo modificações que desrespeitam a individualidade.
A história de Patiño é emblemática. Em 1988, sua participação nos Jogos Olímpicos de Seul foi vetada após um exame clínico do COI detectar a presença de um cromossomo Y em suas células. Esse incidente deu início a uma revisão das normativas que regem a identidade de gênero no esporte, mas Patiño, apesar de vencer a batalha contra o COI, viu sua promissora carreira no atletismo ser abruptamente interrompida.
Embora o Comitê Olímpico Internacional (COI) tenha revogado os testes invasivos, a luta pela inclusão de pessoas trans e intersexuais continua. A pressão para que atletas se conformem a padrões específicos de gênero ainda persiste, afetando suas carreiras e desencorajando a participação de pessoas com características corporais diversas. A história dos Jogos Olímpicos está repleta de momentos de manifestação política, desde os Jogos de 1936 em Berlim até o boicote de 1980 em Moscou, refletindo o papel do esporte como um campo de batalha para questões de identidade e igualdade.
O cenário atual é alarmante, com o aumento de movimentos fascistas que atacam os direitos das minorias. O caso de Imane Khelif exemplifica como a política pode desumanizar figuras públicas para promover uma agenda autoritária. A identidade e os direitos das pessoas trans e intersexo estão sob constante ameaça, refletindo uma luta contínua contra a discriminação e a exclusão.
Concluímos que a polêmica envolvendo Imane Khelif e outras atletas é representativa de uma batalha mais ampla pela acessibilidade e pelos direitos de todos os corpos. Se esses participantes não estivessem em destaque, a mídia e os setores conservadores se preocupariam com questões de gênero e igualdade? É crucial que a sociedade continue a garantir os direitos e a dignidade das pessoas trans e intersexo, assegurando que todos possam participar de forma plena na vida social, política e cultural, mantendo a promessa de liberdade, igualdade e fraternidade.
*Rachel Macedo Rocha é advogada, professora e pesquisadora, vice-presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/SP
*Walter Mastelaro é advogado, membro da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/SP. Atua com diversidade e saúde
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