Ex-vice-presidente do PSD — Partido Social Democrata — o político português Miguel Relvas tem uma visão do Brasil de quem defende iniciativas para a integração com Portugal. O ex-deputado foi um dos palestrantes do XII Fórum de Lisboa, realizado entre 26 e 29 de junho, com a presença de juristas e autoridades públicas dos dois países. O evento é uma iniciativa do IDP, da Fundação Getúlio Vargas e da Universidade de Lisboa.
Com esse olhar, Relvas analisa o cenário político brasileiro, em que dois impeachments ocorreram em 25 anos, o Congresso conquistou poderes de comandar o orçamento e o Executivo precisa fazer acordos de toda ordem para manter a governabilidade. Enquanto isso, o Judiciário imiscui-se em grandes temas da política, regulamenta temas que deixam por omissão de ser tratados pelo Legislativo.
O caminho para reduzir crises, na visão de Relvas, é o mesmo apontado pelo ex-presidente Michel Temer: o semipresidencialismo, aos moldes do sistema político de Portugal. "O semipresidencialismo pode se apresentar como uma alternativa viável, uma vez que permite a substituição institucional e não traumática de governos que perderam a confiança política", acredita Relvas que exerceu sete mandatos parlamentares e hoje é consultor de empresas.
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No XII Fórum de Lisboa, o ex-presidente Michel Temer defendeu o semipresidencialismo como sistema para o Brasil. Qual a sua opinião sobre essa proposta?
Foi para mim uma honra e alegria participar no XII Fórum de Lisboa, a convite do ministro Gilmar Mendes e do professor Carlos Blanco de Morais, e considero o principal fórum de reflexão política e institucional que se realiza nos nossos dois países. Estou convencido de que aumentará a sua importância nas próximas edições, pois os temas são vastos e tão profundos como os desafios que as nossas sociedades têm pela frente. Historicamente, o sistema semipresidencial resultou das fraquezas do sistema parlamentar. Por isso, o reforço do chefe do Estado deve ser proporcionado à compensação dessas fraquezas, entre as quais avulta a incapacidade de formar maiorias estáveis e coerentes, base da almejada continuidade governamental. Portanto, é natural que os poderes do presidente fiquem em boa parte no papel — diga o que disser a Constituição — sempre que o sistema partidário produz afinal essa maioria. O destino dos regimes ditos semipresidenciais não depende, em última instância, da vontade dos protagonistas, mas sim da evolução de relações políticas objetivas: da existência, da superveniência ou da ausência de uma sólida maioria parlamentar e da posição do presidente relativamente a ela. Sem dúvida, os fatores pessoais também pesam, mas a eficácia das ações voluntaristas tende a ser marginal. Num regime deste tipo assistir-se-á, em regra, a uma oscilação entre o desempenho pelo presidente, em momentos críticos, de um papel decisivo, mas pautado pelas necessidades do sistema político-partidário, que no parlamento se exprime e para cuja disciplina e estabilização deve contribuir; e a sua redução (dele, presidente) a proporções semelhantes às de um chefe de Estado em regime parlamentar, quando, com o dito sistema já disciplinado e estabilizado, o parlamento volta a encabeçar a República.
O Legislativo brasileiro tem um enorme poder sobre o Orçamento. O Executivo brasileiro se tornou coadjuvante?
O semipresidencialismo surge na sequência de disfunções importantes do parlamentarismo e do presidencialismo, cujos problemas se manifestam tanto no plano da instauração de regimes verdadeiramente democráticos quanto no que diz respeito à governabilidade, à eficácia e à capacidade estrutural de superar eventuais crises políticas. Na verdade, o modelo semipresidencialista surgiu como uma alternativa que procurava reunir as qualidades dos sistemas, ditos puros, do parlamentarismo e do presidencialismo, sem incidir em algumas das suas vicissitudes. O semipresidencialismo não se trata de um "modelo híbrido" desprovido de unidade e coerência, nem um agregado de elementos estanques. Pelo contrário, trata-se de uma "fórmula" dotada de identidade própria, capaz de oferecer uma "solução" democrática e adequada para alguns dos problemas políticos com que os países democráticos se deparam. No sistema semipresidencialista, o presidente é o chefe de Estado, eleito por voto secreto e direto, e o primeiro-ministro é o chefe de Governo, que é nomeado pelo presidente, tendo em consideração os resultados das eleições. No semipresidencialismo ao presidente são-lhe, por regra, atribuídos significativos poderes constitucionais, pelos quais se realça a faculdade de nomear e exonerar o primeiro-ministro, de dissolver o Parlamento, de exercer poderes especiais em momento de crise, de comandar as Forçar Armadas, convocar eleições e referendos e, em alguns casos, de conduzir a política externa. Nesse sistema, o que difere entre os países que adotaram o semipresidencialismo é a maior ou menor intervenção do presidente na vida política. Em suma, o semipresidencialismo é autônomo, sem margem de dúvidas, relativamente ao sistema presidencial. A responsabilidade política do primeiro-ministro perante o Parlamento é um fato da maior importância na caracterização dos sistemas de governo, o que o semipresidencialismo possui e que está necessariamente ausente no sistema presidencial. Mas é igualmente autônomo relativamente ao sistema parlamentar. A eleição popular do presidente da República e a consequente possibilidade de usar os significativos poderes políticos que a Constituição lhe confere, é outra situação ausente no sistema parlamentar, torna-se de relevante importância na caracterização do semipresidencialismo.
O senhor tem dito que o Brasil precisa de uma reforma política. Como seria?
O presidencialismo brasileiro é, muitas vezes, apontado como uma "fábrica de crises": aponta a uma forte concentração de poder numa só figura, o que potencializa o risco de autoritarismo; favorece a possibilidade de crises institucionais graves causadas pelo desacordo entre o Executivo e o Legislativo; não apresenta os instrumentos adequados para evitar e superar crises políticas, uma vez que não existe a possibilidade de destituição legítima do presidente (no sistema presidencialista o presidente só pode ser removido legitimamente em caso de crime de responsabilidade, por meio de um procedimento complexo e traumático) e o governo acaba por se prolongar até ao final do mandato sem sustentação política e sem condições de governabilidade. Isso coloca o país em situação de paralisia e indefinição política, com elevados custos econômicos e sociais.
Nesse contexto, o semipresidencialismo é viável?
O semipresidencialismo pode se apresentar como uma alternativa viável, uma vez que permite a substituição institucional e não traumática de governos que perderam a confiança política. Em caso de perda de apoio popular e parlamentar, o governo pode ser destituído por simples voto de desconfiança. Além disso, no sistema semipresidencialista, o presidente é eleito por voto direto e universal e funciona como poder moderador das instituições. Por outro lado, o sistema presidencialista brasileiro (também denominado "presidencialismo de coalizão") encontra o presidente obrigado a permanentes transações com diferentes bancadas parlamentares, o que leva a um fortalecimento do Congresso. A dimensão patológica dessa estranha inversão de rumo do presidencialismo brasileiro na gestão das coligações atingiu o clímax com os presidentes Lula da Silva e Dilma Roussef, que lograram forjar uma superbancada de apoio que ia desde partidos da esquerda até a partidos da extrema-direita. Esse tipo de coligações alargadas assenta em práticas de pork-barrel — políticas e mesmo prebendas gizadas à margem da lei e da moralidade pública. O alto preço da estabilidade e do fortalecimento do presidente teria sido alcançado à custa do financiamento ilegal de partidos políticos e da distribuição de favores financeiros entre dirigentes políticos e partidos da coligação.
O semipresidencialismo reduz a possibilidade de corrupção?
Ao permitir uma interação mais colaborativa entre os Poderes, o semipresidencialismo fomenta a atuação a partir da base normativa constitucional, desincentivando procedimentos informais que redundam na prática de atos pouco republicanos. Além disso, respeitar-se-ia a tradição brasileira de eleição direta para a Presidência da República, ao mesmo tempo que se evitaria a concentração excessiva de poder nas mãos do chefe de Estado. A implementação do semipresidencialismo permite uma relação mais harmoniosa entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo, além de permitir a participação das minorias no programa de governo. Contribui, também, para uma redução das crises políticas, mesmo no caso em que não exista maioria que apoie o programa de governo, uma vez que existirá a possibilidade do governo de coabitação, pois é mais fácil trocar o governo e, até mesmo, o Parlamento, do que substituir um presidente por meio de um processo de impeachment. Por fim, a adoção do sistema semipresidencialista pode contribuir para reduzir a polarização política e uma menor ação do papel político do Supremo Tribunal Federal para apaziguar as divergências entre o Congresso e o Governo, podendo o presidente da República funcionar como mediador ou árbitro no sistema político. Para que essa reforma tenha sucesso, é necessário resolver previamente a fragmentação do sistema partidário — é necessário primeiro alterar o sistema eleitoral, de modo a obter uma redução muito significativa do número de partidos, e só depois fazer a reforma do sistema político.
Enquanto o Executivo se submete ao Legislativo, o Judiciário brasileiro tem sido protagonista em debates sobre os problemas do país. Por que o STF, na sua visão, se tornou tão forte?
Penso que a força do STF advém, em grande medida, da qualidade dos seus 11 membros. São personalidades prestigiadas, com vida profissional e social relevante e, por isso mesmo, geradores de enorme respeitabilidade e prestígio. São os protagonistas do regime político-partidário que, inúmeras vezes, recorrem ao STF para dirimir conflitos e reduzir a conflitualidade.
Como vê os ataques dos bolsonaristas a ministros do Supremo Tribunal Federal e à própria Suprema Corte brasileira?
Com óbvia preocupação. Qualquer ataque a órgãos de soberania, seja ele qual for, e parta o mesmo de quem partir, não é bom para a democracia, enfranquecendo-a e tornando-a mais vulnerável.
Na sua visão, o atentado a Trump fez dele um candidato imbatível nas eleições norte-americanas?
Imbatível, não sei, aliás ninguém sabe. Mas que o tornou ainda mais forte, com certeza que sim, pelo menos, é isso que as sondagens têm confirmado.
Kamala Harris tem mais possibilidades de derrotar Trump do que o presidente Joe Biden?
Pelo menos, pese um certo apagamento a que o seu cargo foi votado nestes últimos anos, Kamala Harris aparenta ser uma candidata menos vulnerável que Joe Biden. Se isso chega para derrotar Donald Trump, a que tudo tem corrido bem nos últimos dias, é uma incógnita cujo desfecho ninguém poderá adivinhar. A política é feita de surpresas e o que hoje aparenta ser verdade, amanhã pode não passar de uma mentira.
Acredita que uma eventual vitória de Donald Trump nos Estados Unidos fortaleceria o bolsonarismo no Brasil?
Aprendi ao longo dos anos que estou na política que um dos fatores que a caraterizam é a imprevisibilidade. Na política o 1+1 não somam necessariamente 2, tal como não se reduz a preto e branco.