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A trajetória de Kamala Harris na Justiça antes das eleições dos EUA

Kamala Harris era considerada linha-dura na sua atuação como promotora de Justiça do Condado de Alameda, procuradora-geral de São Francisco e da Califórnia

Mulher negra descendente de imigrantes, favorável ao aborto e a restrições ao acesso a armas, Kamala Harris é a antítese de Donald Trump. -  (crédito:  AFP)
Mulher negra descendente de imigrantes, favorável ao aborto e a restrições ao acesso a armas, Kamala Harris é a antítese de Donald Trump. - (crédito: AFP)

Na noite de 10 de abril de 2004, o policial de São Francisco Isaac Espinoza, 29 anos, foi executado com 11 tiros de fuzil na barriga e na coxa, sem chance para sacar a própria arma para se defender. O crime, como não poderia deixar de ser, causou enorme comoção na comunidade e especialmente entre os colegas e familiares.

Na Califórnia, o assassinato de policiais é causa de pena de morte. Esse era o desfecho que muitos esperavam para o caso. Mas a procuradora-geral de São Francisco, eleita um ano antes, Kamala Harris, não estava disposta a recuar no compromisso firmado em sua campanha ao Ministério Público de nunca pedir a pena de morte por mais hediondo que o crime fosse.

E, assim foi, apesar de o episódio ter marcado a vida pública da hoje vice-presidente da República e provável candidata à Casa Branca pelo partido Democrata. Em artigo publicado no jornal San Francisco Chronicle, Kamala justificou na época: "Para aqueles que querem que este réu seja condenado à morte, deixe-me dizer simplesmente que não se abrem exceções a questões de princípios".

O assassino do policial, David Hill, tinha 21 anos no dia dos disparos. Em 2007, ele foi condenado à prisão perpétua sem direito à liberdade condicional e segue cumprindo a pena na prisão estadual de New Folsom, na Califórnia. O episódio foi narrado no livro Kamala Harris, a biografia escrita pelo jornalista Dan Morain, que acompanha a trajetória da vice-presidente desde o início de sua carreira como promotora.

Apesar de ser contra a pena de morte, Kamala Harris era considerada linha-dura na sua atuação como promotora de Justiça do Condado de Alameda, procuradora-geral de São Francisco e da Califórnia. E, por alguns, até criticada por excesso de defesa do encarceramento.

Uma coisa é certa: Kamala Harris, ao estilo de quem, pela profissão, está acostumada a embates duros nas sessões de julgamento para convencer o júri, é uma excelente debatedora. E foi com um tom a la Ministério Público que Harris deu a largada na campanha presidencial no início da semana, mesmo ainda sem a confirmação oficial de sua candidatura — o que ocorrerá apenas em agosto na convenção dos democratas.

Num dos primeiros discursos, provocou o adversário, Donald Trump, que recentemente foi condenado em 34 acusações de fraude contábil, tornando-se o primeiro ex-presidente dos Estados Unidos com um veredito como esse. "Antes de me tornar vice-presidente e antes de ser eleita senadora dos Estados Unidos, eu era procuradora-geral da Califórnia. Antes disso, eu era uma promotora que enfrentava predadores, fraudadores e trapaceiros. Então eu conheço o tipo de Donald Trump", afirmou. E acrescentou: "Nesta campanha, colocarei meu histórico contra o dele".

O bom desempenho de Kamala nos debates é um de seus principais atributos. Ela protagonizou cenas memoráveis, como quando deixou sem palavras o juiz Brett Kavanaugh, nomeado por Trump à Suprema Corte americana. "Consegue pensar em alguma lei que dê ao governo o poder de tomar decisões sobre o corpo masculino?", questionou.

A defesa do aborto é, aliás, uma de suas principais bandeiras. "Nós, que acreditamos na liberdade reprodutiva, impediremos as proibições extremas do aborto impostas por Donald Trump — porque confiamos nas mulheres para tomarem decisões sobre os seus corpos", discursou. E apontou: "Quando o Congresso aprovar uma lei para restaurar as liberdades reprodutivas, como presidente, eu a sancionarei".

Com uma maioria conservadora formada com a ajuda de Trump, a Suprema Corte dos Estados Unidos derrubou, em 2022, uma decisão de 1973, conhecida como Roe v. Wade, que reconheceu o direito constitucional ao aborto e o legalizou em todo o país. Por 6 votos a 3, os juízes da Suprema Corte mantiveram uma lei do Mississippi apoiada pelos republicanos que proíbe o aborto após 15 semanas de gestação. Agora, a questão é local. Cada estado americano poderá adotar as próprias regras, inclusive, proibindo totalmente o aborto. Nesse embate, Kamala tem o apoio até de mulheres republicanas. A maioria do eleitorado feminino americano é favorável à liberdade de decisão das mulheres pelo aborto, segundo pesquisas divulgadas nos Estados Unidos.

Mulher negra descendente de imigrantes, favorável ao aborto e a restrições ao acesso a armas, Kamala Harris é a própria antítese do adversário, Donald Trump. A mãe de Kamala, Shyamala Gopalan Harris, nasceu na Índia e imigrou para os Estados Unidos aos 19 anos em busca de aprofundamento nos estudos na área de saúde. Tornou-se uma referência em estudos sobre câncer de mama. Uma inspiração para a filha. O pai de Kamala, Donald Harris, é jamaicano e se mudou para a Califórnia para estudar economia na Universidade de Berkeley. Hoje é professor emérito na Universidade de Stanford.

Kamala Harris está longe de ser a imigrante negra que passou dificuldades para estudar e obter sucesso. Ela teve apoio e estudou em boas escolas nos Estados Unidos e no Canadá. Mas nem por isso sua trajetória de obstinação pode ser menosprezada. Ela foi a primeira mulher a assumir a procuradoria-geral da California. Foi a primeira vice-presidente dos Estados Unidos. Elegeu-se para esse cargo ao lado de Joe Biden exatos 100 anos após a entrada em vigor da 19ª Emenda da Constituição norte-americana, que garantiu o direito a votos de mulheres. Agora tem a possibilidade de inaugurar o título de "madam president".

A democrata disputou a primeira eleição aos 38 anos, para procuradoria-geral de São Francisco. O lema era "a voz de hoje pela justiça". Prometeu aumentar o número de ações penais por violência doméstica e reduzir o tráfico de crianças. Na defesa da infância, Kamala foi radical. Ela defendeu a aprovação de uma lei estabelecendo que pais pudessem ser acusados de crimes e serem presos se os filhos matriculados nos ensinos fundamental e médio deixassem de frequentar as aulas. A pena podia ser uma multa de dois mil dólares ou um ano de cadeia. Até hoje a lei está em vigor, embora seja menos adotada em ações impetradas por procuradores da Califórnia.

Uma das batalhas de Kamala no Ministério Público envolveu interesses financeiros poderosos. Em suas contas nas redes sociais, ela falou sobre sua atuação na crise das hipotecas nos Estados Unidos: "Como procuradora-geral da Califórnia, briguei com os cinco maiores bancos de Wall Street durante a crise financeira. Conseguimos vinte bilhões de dólares para os proprietários de moradias da Califórnia e juntos aprovamos a lei antiexecução hipotecária dos Estados Unidos".

O rigor de Kamala Harris é motivo de críticas de adversários, assim como a risada acentuada, tripudiada por Trump e alvo de memes. Da mesma forma, o perfil forte e decidido. A provável candidata democrata, como acontece com muitas mulheres no poder, será questionada pelas qualidades e defeitos. É o jogo — muitas vezes sujo — da política. Ela, no entanto, tem vencido obstáculos com frieza e cálculo dos riscos.

 

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postado em 25/07/2024 06:00 / atualizado em 25/07/2024 00:00
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