Por Samantha Ribeiro Meyer-Pflug Marques* - O discurso radicalizado das ideias, em tempos de acentuada polarização política, nos leva a reflexões que possam garantir a coexistência entre a liberdade de expressão do pensamento e o respeito à honra e à integridade moral dos cidadãos. O discurso do ódio é a manifestação de ideias que incitam à discriminação racial, social, étnica, sexual, de nacionalidade ou religiosa em relação a determinados grupos.
É uma apologia abstrata à intolerância, que representa o desprezo e a discriminação a grupos com características comuns, crenças, qualidades ou ainda que estejam na mesma condição social, econômica, como os ciganos, nordestinos, negros, judeus, árabes, islâmicos, homossexuais e mulheres. O destinatário da agressão é violado no âmago da sua essência. Para preservá-lo, seria necessário que abandonasse as características da comunidade ao qual pertence, o que resultaria na renúncia de crenças políticas e religiosas. É a perda de sua própria identidade. Mas o discurso do ódio não representa uma ação concreta a um indivíduo específico — como ocorre na calúnia, difamação e injúria: encontra-se no âmbito das ideias, estando a priori protegido pela liberdade de expressão do pensamento.
O combate às manifestações coléricas é um dos grandes desafios a ser enfrentado pelo Estado Democrático de Direito, que, ao se utilizar de expressões de ódio, acaba por diminuir a dignidade das pessoas e a autoestima, resultando certas vezes na impossibilidade de eles virem a participar de determinadas atividades e, até mesmo, do debate público. Contudo, tecer ideologias, por si só, não constitui crime. A liberdade de consciência e ideológica está constitucionalmente assegurada.
A necessidade de se enfrentar o discurso do ódio é um mantra disseminado, justamente, mundo afora. Todavia, há diferenças significativas na maneira de se combatê-lo. Identificam-se dois grandes sistemas: o americano e o europeu. No modelo americano, permite-se o expediente, desde que não represente um perigo claro e iminente para a sociedade, por meio de uma ação concreta. No europeu, veda-se qualquer discurso de conteúdo incitador à violência, física ou moral, preconceito e discriminação.
No Brasil, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é flutuante. O discurso do ódio foi objeto de análise, em 2002, no Caso Ellwanger, no qual se alinhou ao sistema europeu ao condená-lo por racismo. Todavia, em decisões posteriores, declarou a não recepção da Lei de Imprensa pela Constituição de 1988, autorizou a marcha da maconha e a legalidade de biografias não autorizadas, dando nítida prevalência do direito à liberdade de pensamento. Recentemente, o discurso do ódio ganhou novos contornos tendo em vista a disseminação por meio das redes sociais, vez que a veiculação é mais dinâmica e o controle mais difícil. Assim, o Tribunal Superior Eleitoral não tem admitido narrativa dessa natureza, dentro da necessidade de sua criminalização e das fake news.
A criminalização do discurso do ódio não é uma medida eficaz para combater as vozes raivosas. Pelo contrário, dá mais força e validade para sua existência. Ao proibi-lo, adverte Michel Rosenfeld, se combate a missiva que representa o intolerante, com uma atitude intolerante, o que só pode um novelo de inflexibilidade. Quer parecer que a solução reside na educação com fundamento na proteção da dignidade da pessoa humana e no fomento da implantação de políticas públicas de promoção dos direitos fundamentais das minorias.
Deve-se evitar limitar o exercício da liberdade de expressão, pois não existe verdade absoluta ou incontestável. Não há opinião ou ideia infalível. E, ainda que se trate de uma ideia falsa, não teria ela o direito de ser discutida e de forma vigorosa? Somente por meio do livre debate, da existência de opiniões conflitantes, que se alcança a busca da verdade. Esse é um caminho para combater, ou melhor, desqualificar o discurso do ódio na raiz.
O discurso do ódio precisa ser combatido pelo Estado Democrático de Direito, nesse particular, não há qualquer divergência. Mas essência do sistema democrático, do pluralismo, e da garantia da liberdade de expressão exige uma discussão ampla e aberta, na qual prevaleça a convivência pacífica das ideologias e opiniões. Não existe democracia sem liberdade de expressão do pensamento.
*Advogada, doutora e mestra em Direito pela PUC/SP. Pós-doutora pela UNIFOR. Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia, professora do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito da Uninove
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