A Câmara dos Deputados aprovou regime de urgência para a tramitação do projeto de lei, do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao homicídio. Com isso, a proposta pode seguir diretamente para o plenário, sem passar pelas comissões.
Caso a lei seja aprovada, o aborto seria igualado ao homicídio simples, do artigo 121 do Código Penal. A pena varia entre seis e 20 anos de prisão. No caso do estupro, previsto no artigo 213 do CP, a pena é de seis anos quando a vítima e pode chegar a 12 anos, caso a vítima seja menor de idade.
A advogada Mayra Cardozo, mentora de Mulheres e Advogada, especialista em gênero e sócia do escritório Martins Cardozo Advogados Associados, afirma que o projeto trata a vítima de forma mais severa do que seu agressor. "O crime de estupro já não é um crime que é considerado gravoso ao ponto de ser julgado pelo Tribunal do Júri, enquanto o aborto já é visto como um dos crimes mais gravosos e de competência do Tribunal do Júri", explica.
Qual a sua avaliação, do ponto de vista criminal, sobre o projeto de lei, em tramitação na Câmara, que equipara o aborto após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio?
Na minha avaliação, esse projeto é um verdadeiro absurdo, uma vez que se trata sobre uma violação e controle arbitrário sobre os corpos femininos, violando os direitos reprodutivos das mulheres e chancelando a lógica de que o papel da mulher é gerir, não importando sua vontade sobre seus corpos nem se se trata de um aborto humanitário, no caso de estupro, nem terapêutico no caso de proteção a sua saúde.
Acha que os conservadores estão mais preocupados em punir as mulheres do que os agressores e estupradores?
Certamente, mesmo porque o crime de estupro já não é um crime que é considerado gravoso ao ponto de ser julgado pelo Tribunal do Júri, enquanto o aborto já é visto como um dos crimes mais gravosos e de competência do Tribunal do Júri. Ao equiparar o crime de aborto a homicídio, a pena aumentaria drasticamente, que é de reclusão de seis a 20 anos, enquanto a pena do estupro é de 6 a 10 anos.
E do ponto de vista dos direitos humanos, qual é o impacto do projeto?
Viola os direitos humanos, uma vez que viola os direitos reprodutivos das mulheres e ainda viola o princípio da proporcionalidade e razoabilidade da pena, uma vez que o aborto é uma realidade no Brasil — a diferença do seu modus operandi varia conforme a classe social: mulheres ricas fazem em clínicas onde o sigilo é preservado, enquanto mulheres pobres fazem em casa com métodos caseiros que, muitas vezes, as levam a morte por hemorragia. Então, essa lei seria mais uma forma de operar a seletividade penal sobre determinados corpos de mulheres que são as mulheres negras, pobres e de periferia.
O debate sobre aborto deveria ser considerado um tema de saúde pública?
Certamente, essa lógica responsabiliza única e exclusivamente uma mulher pela gravidez indesejada e respalda a lógica de que, se uma mulher não quer ser violentada, ela deve limitar sua liberdade e não o agressor conter seus estímulos agressivos todos como "incontroláveis" pela sociedade patriarcal. É a lógica religiosa de responsabilizar a mulher pecadora por causar o desejo no homem ou a mulher pecadora que não quer ser mãe.
Com 22 semanas, o bebê já está praticamente formado. É uma vida. Como avaliar essa questão sem lamentar a violência com um ser humano, como alegam os defensores da criminalização do aborto?
Atualmente o Código Penal não estipula semanas para fazer o a aborto. Se estipula que o aborto é crime, exceto em situações humanitárias, logo de violência sexual, ou terapêuticas, ou seja, quando a gravidez incorre em algum risco para a mãe ou nos casos de hipóteses jurisprudências de fetos anencefálicos. Nós não temos no nosso ordenamento jurídico nenhuma definição sobre qual semana esses abortos legais podem ser realizados e nenhuma restrição. Logo, pelo Código Penal, o aborto legal é autorizado em qualquer semana da gestação desde que preencha uma dessas hipóteses
O projeto transforma a vítima em culpada?
De acordo com a natureza jurídica do projeto, o que vemos é uma tentativa de revitimização da mulher. Ela é vista como a principal culpada pelo acontecimento do crime — geralmente, esses episódios trazem questões como "com essa roupa, ela pediu" ou "por que ela estava sozinha à noite?". A revitimização é, inclusive, uma espécie de violência psicológica. Em casos judiciais, essa tática escusa é usada por advogados da outra parte, colocando em xeque as palavras — e a própria vivência — da vítima e fazendo com que ela não se sinta uma vítima em primeiro lugar. Mulheres que estão em um processo judiciário no polo ativo costumam ser revitimizadas, pois é trazido para esse processo todo um resquício de uma ordem patriarcal, na qual os corpos femininos são objetificados. Mulheres são constantemente tratadas como loucas, descredibilizadas, interrompidas e questionadas naquilo que elas argumentam.
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