Obituário

Carlos Mathias: o mundo jurídico perdeu um grande mestre

Em 8 de maio, Carlos Mathias partiu, aos 85 anos, em decorrência de falência múltipla de órgãos

Na sua última sessão como ministro convocado na Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o desembargador federal Carlos Fernando Mathias de Souza encerrou os trabalhos como uma mensagem marcante. "Que bom que nós sejamos latinos, pois temos uma palavra bela para a despedida: adeus, as cinco letras que choram", afirmou.

Na 2ª Seção, emocionou-se com as homenagens dos ministros, falou de momentos que viveu com cada colega e concluiu seu pronunciamento citando trecho do poema Cântico Negro do português José Régio: "Não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que não vou por aí!".

Era o ano de 2009. Carlos Mathias deixava o serviço público porque completara 70 anos e a idade lhe impôs o afastamento compulsório — apenas em 2015, o prazo para permanecer na ativa foi ampliado para 75 anos. Aposentou-se da toga, mas ainda viveu 15 anos de sua paixão: o direito.

Ao deixar a magistratura, ele voltou a advogar e manteve até 2021 a organização das edições do Seminário Internacional Ítalo-Ibero-Brasileiro de Estudos Jurídicos, um dos eventos dos operadores de direito mais tradicionais da capital. Unindo-o ao que o antecedeu, o Seminário Roma-Brasília, foram 36 anos de coordenação de debates jurídicos.

O último, em setembro de 2021, no STJ, tratou de tema atualíssimo: "As relações jurídicas sob a realidade digital". Alguns dos palestrantes eram conhecidos de Carlos Mathias desde a infância. Outros se tornaram amigos ao longo de sua trajetória na carreira.

Durante o seminário, o jurista Carlos Bastide Horbach, então ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), definiu Carlos Mathias como o "dínamo da cultura jurídica". Ele era culto, gentil e atuante nos eventos da comunidade jurídica. Conseguia reunir ministros, advogados e demais integrantes do mundo do direito quando esses debates ainda eram raros em Brasília. Construiu, assim, uma longa trajetória de vida no sistema de justiça.

Em 8 de maio, Carlos Mathias partiu, aos 85 anos, em decorrência de falência múltipla de órgãos. Deixou duas filhas, Ana Luiza e Fernanda, um neto, Henrique, a esposa, Maria Luiza, com quem foi casado por quase 50 anos, e uma legião de admiradores. Com carreira no mundo jurídico iniciada no início dos anos 1960, Carlos Mathias exerceu a advocacia antes de chegar à magistratura. Foi procurador do Distrito Federal, tendo alcançado o posto de subprocurador-geral.

Foi também presidente do Conselho Nacional Autoral e do Conselho de Educação do Distrito Federal. Teve ainda uma curta passagem pelo Ministério Público da Bahia, como promotor de Justiça. Atuou ainda como diretor da Fundação Cultural do Distrito Federal, quando deixou como um de seus legados a conclusão da obra do Teatro Nacional, em 1979, como conta o ex-governador José Roberto Arruda, que à época era diretor de Edificações da Novacap, no governo de Aimé Lamaison.

A professora Eurides Brito era secretária de Educação e Cultura e surgiu aí uma longa amizade de décadas. Ainda sob a gestão de Carlos Mathias, na Fundação Cultural, foi inaugurada, em 24 de julho de 1981, a sede da Secretaria de Cultura que funciona no anexo do Teatro Nacional.

Na magistratura, Carlos Mathias integrou o plenário do Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal (TRE-DF) como desembargador eleitoral e depois, indicado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), foi nomeado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso para vaga do quinto constitucional no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1).

A posse ocorreu em 17 de fevereiro de 1995. De 2002 a 2004, ele foi vice-presidente do Tribunal. Em seguida, assumiu a direção da Escola de Magistratura Federal da 1ª Região para o biênio 2004-2006. De 2005 a 2006, também foi diretor da Revista do TRF1.

Um dos marcos de sua passagem pelo TRF1 foi a histórica decisão que assinou, em 2001, sobre a possibilidade de licença de servidor público solteiro em casos de adoção de criança. O acórdão consta na página da memória institucional do TRF1. Com base no voto de Carlos Mathias, o TRF1 considerou que, no caso de ser o servidor solteiro, que opta pela adoção solitária, seu papel na relação com a criança será de pai e mãe simultaneamente. Dessa forma, a adoção realizada unicamente por um homem não diminui a necessidade da criança de ambientação no novo lar.

Assim, prevaleceu o entendimento de que o artigo 210 da Lei 8.112/1990 — que estabelece licença de 90 dias em casos de adoção — deve ser interpretado como norma legal que busca a proteção da criança, não como benefício do servidor ou servidora.

A partir de 2007, o magistrado foi convocado para atuar no STJ. Foi o primeiro desembargador federal a exercer tal cargo. Compôs, inicialmente, a Sexta Turma. Em seguida, transferiu-se para a Segunda Turma e deixou a Corte, dois anos depois, como membro da Quarta Turma, tendo passado por todas as seções do STJ. Atuou em matérias de direito público, penal e privado no tribunal que forma a jurisprudência do país.

Como parte das homenagens que recebeu na aposentadoria, em 2009, ouviu do ministro João Otávio Noronha um elogio sobre sua trajetória no STJ: "Vossa Excelência nos deixa em termos de trabalho, mas não em termos de memória". O ministro Fernando Gonçalves, então decano, ressaltou a contribuição que a experiência do magistrado propiciou ao STJ. Os dois foram grandes amigos. Carlos Mathias, aliás, tinha admiradores no Judiciário, na advocacia e entre alunos que passaram pelas disciplinas que ministrou.

Ele nunca se desligou da comunidade acadêmica. Foi professor do curso de mestrado em direito na Universidade Federal de Goiás, do curso de direito da Universidade de Brasília (UnB), e deu aulas nas faculdades de Serviço Social do DF, de Educação, do Instituto de Ciências Humanas da UnB, e no Centro Universitário de Brasília (Ceub).

Ao se manifestar sobre o legado do magistrado, a presidente do STJ, ministra Maria Thereza de Assis Moura, ressaltou o respeito que Carlos Mathias tinha entre os colegas do Judiciário. "Eu convivi com o Mathias nas sessões de julgamento da Sexta Turma e nos diversos eventos organizados por ele. Além de muito querido por todos, ele foi uma referência em temas importantes para o Judiciário, um legado que se multiplica nas centenas de alunos que puderam compartilhar do seu conhecimento. É sem dúvida uma perda inestimável para o mundo jurídico", afirmou.

Nascido em 25 de março de 1939, no Rio de Janeiro, Carlos Mathias graduou-se em ciências sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e em direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, atual UFRJ, em 1961. Na trajetória acadêmica, especializou-se em várias áreas do direito, como o direito autoral, pela Universidade Federal de Goiás.

Apaixonado pelo debate jurídico, Carlos Mathias foi um importante colaborador do caderno Direito&Justiça do Correio Braziliense, na época em que era editado pelo professor Josemar Dantas. No seu vasto currículo, consta ainda ter pertencido à Academia Brasiliense de Letras (ABL), à Academia de Letras e Música do Brasil (Almub), ao Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal (IHGDF) e à Associação Nacional de Escritores (ANE).

O presidente nacional da OAB, Beto Simonetti, acredita que Carlos Mathias tenha contribuído para o sistema judicial brasileiro tanto por meio de sua atuação como magistrado, quanto por seu trabalho acadêmico. "Que sua memória e seu legado perdurem como inspiração para as gerações futuras", afirmou.

 


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