CÃO JOCA

Artigo: Quem matou Joca?

A morte de Joca deixa claro que não é mais possível deixar as companhias aéreas decidirem sozinhas como transportar nossos animais de estimação

Toda a repercussão social — e a verdadeira indignação pública — gerada pela morte do cão Joca, quando do seu transporte, com erros de percurso, no porão de um avião, mobilizou vários setores da sociedade e da política em busca de uma regulamentação adequada do transporte aéreo de animais de estimação.

Diante das comoventes cenas do sofrimento dos tutores de Joca, também se buscam respostas sobre a responsabilidade acerca do lamentável episódio.

Afinal, quem matou Joca?

Parece um pouco mais do que evidente que a companhia aérea falhou. Enviou a caixa com o animal para destino errado. Das idas e vindas, com ou sem a assistência adequada às suas necessidades, adveio o óbito, certamente após intenso sofrimento físico e psíquico. Essa questão há de ser resolvida entre os tutores de Joca e a companhia aérea.

A questão que o caso Joca suscita é bem mais ampla, porque não se trata da primeira vez que um animal de estimação morre ao ser transportado no porão de carga de avião. Exatamente por isso que as companhias aéreas, cada uma do seu jeito, autoriza, sob certas circunstâncias, o transporte dos animais na cabine da aeronave. Mesmo assim, muitos tutores ainda são obrigados a recorrer a um advogado animalista - especializado nas demandas por direitos animais - para obter ordem judicial garantindo o transporte em cabine. Tudo isso sem falar no estresse de alguns tutores os quais, mesmo com a ordem em mãos, têm negado o acesso do seu animal à cabine no momento do check-in.

Muitos desses fatos poderiam ter sido evitados - e talvez Joca ainda estivesse vivo -, caso a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), em vez de deixar ao alvedrio das empresas aéreas, tivesse chamado para si a responsabilidade de regulamentar esse transporte, estabelecendo as diretrizes mínimas para todas as companhias do setor.

Essa omissão já vem de alguns anos, a ponto de a Agência virar ré em várias ações civis públicas, ajuizadas por entidades de proteção animal, as quais exigem um marco regulatório para a matéria. Até onde sei, tais ações, atualmente, estão concentradas, por conexão, perante a Justiça Federal do Paraná.

Na primeira ação que tivemos notícia, o juízo da 6ª Vara Federal de Curitiba deferiu liminar para obrigar a ANAC a regular o transporte, em cabine, de coelhos de estimação. Essa decisão é de 25/9/2021 e gerou a emissão da Portaria 7.491, de 8 de março de 2022, pela qual a ANAC autoriza as companhias aéreas a transportarem coelhos em cabines.

No entanto, a mesma vara federal também conta com outras ações nas quais se busca uma regulamentação mais ampla, abrangendo todos os animais de estimação (não apenas cães e gatos), incluindo os de suporte emocional.

O Núcleo de Pesquisas em Direito Animal, da Universidade Federal do Paraná, emitiu uma nota técnica para subsidiar essas discussões judiciais. Ouvidos os especialistas da área, foi proposta uma minuta de ato normativo, abrangendo a maior parte das controvérsias discutidas em juízo. Essa nota é datada de 30/3/2022. Em outras palavras, já estava disponível uma solução adequada, ainda que passível de algum ajuste, para regulamentar e uniformizar, em todo o país, o transporte aéreo dos animais de estimação. Com clareza e critérios sobre a primazia do transporte dos animais em cabine, dado serem sencientes, muitas vidas animais já poderiam ter sido salvas e muito sofrimento de tutores já poderia ter sido evitado.

A morte de Joca deixa claro que não é mais possível deixar as companhias aéreas decidirem sozinhas como transportar nossos animais de estimação.

Toda a mobilização política atual, com o pronunciamento do ministro de portos e Aeroportos falando em proteção dos animais, com projetos de lei sendo discutidos no Congresso Nacional, e com a ANAC chamando audiência e abrindo consulta pública para a regulamentação da matéria, veio tarde. Joca e muitos outros animais já morreram. Muitos tutores continuam sofrendo até hoje. Persistem a insegurança e a falta de previsibilidade. Com um pouco de boa vontade a ANAC já poderia ter regulamentado o setor, em bases seguras para o transporte aéreo, independentemente de lei.

A omissão da ANAC em proceder ao marco regulatório do transporte de animais de estimação caracteriza um verdadeiro estado de coisas inconstitucional, pois a Constituição proíbe a crueldade contra animais e os reconhece como seres vivos sencientes e dotados de dignidade própria.

Não parece ser necessário abrir uma investigação para saber quem matou Joca.

Vicente de Paula Ataide Junior

Doutor e mestre em direito processual civil pela UFPR. Coordenador do Núcleo de Pesquisas em Direito Animal do PPGDUFPR (ZOOPOLIS). Membro-consultor da Comissão de Juristas para a reforma do Código Civil. Juiz federal em Curitiba

 

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