Por Joaquim Pedro de Medeiros Rodrigues* — Esta segunda década do século 21 aprofundou o complexo contexto social que emergia quando a Constituição da República de 1988 foi editada. Os constituintes originários, de olho naquilo que aconteceu no passado próximo e prevendo a possibilidade de ruptura institucional, asseguraram dois preceitos básicos da advocacia: a indispensabilidade e a inviolabilidade.
Quanto ao primeiro, garante que a jurisdição será prestada com a participação efetiva da advocacia, em todos os níveis, inclusive na própria composição de tribunais. O segundo, dispõe sobre o livre exercício da profissão, com previsão de lei regulamentadora sobre o assunto. O conjunto desses preceitos integra as prerrogativas da advocacia, estabelecida pela Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia).
Este ano, completam-se 30 anos da edição do Estatuto. Sancionado pouco depois da Constituição, trata-se do diploma legal mais importante de toda a advocacia. Além das questões regulatórias da profissão, apresenta diretrizes de comportamento e prerrogativas inerentes ao próprio exercício da advocacia.
Contudo, a aplicação da mencionada lei federal pelo Poder Judiciário e pelos demais órgãos da administração pública nos apresenta não uma sensação diária de aumento das violações às prerrogativas, mas, na verdade, de uma constatação de que o Estado faz do Estatuto uma verdadeira tábula rasa, isto é, uma lei federal que é folha de papel em branco sem qualquer significado. Sem dúvida, o avançar das novas tecnologias vem a contribuir com essa constatação.
A importante instituição dos processos eletrônicos já deu espaço para os tribunais afastarem a presença física da advocacia, com a redução de atendimentos presenciais. Em seguida, sobreveio a pandemia da covid, que ampliou a utilização das novas tecnologias. Com isso, as sustentações orais da advocacia passaram a ser enviadas aos magistrados por meio de mídias de gravação.
Em paralelo, as delegacias de polícia passaram a restringir que elementos informativos, isto é, as provas da investigação, fossem documentados para limitar a aplicação da Súmula Vinculante do Supremo que garante amplo acesso aos elementos de prova.
Até mesmo uma nova forma de perseguição criminal foi forjada, o chamado law fare, que ainda está em debate na doutrina e jurisprudência brasileira, e que vem sendo utilizado para silenciar a advocacia com intimidações jurídico-processuais.
A Lei nº 8.906/94 não tinha como prever tantas alterações do contexto social. Embora seja um texto que estabeleceu bases importantes para garantia de uma atuação profissional livre e independente, precisou de algumas reformas, e ainda clama por atualizações.
Assim, a Ordem dos Advogados do Brasil, instituição que detém o monopólio da defesa das prerrogativas da advocacia, precisa atuar em, pelo menos, três eixos para que as prerrogativas da advocacia não sejam colocadas a grave perigo. Aliás, deve-se destacar que a desestabilização das prerrogativas da advocacia interessa unicamente a quem quer dar um xeque à própria democracia brasileira.
O primeiro eixo diz respeito na atualização da legislação federal com o atual contexto. A participação da advocacia em julgamentos, por exemplo, não se dá com o envio de mídias aos gabinetes dos juízes, desembargadores ou ministros. O advogado, como primeiro juiz da causa, tem a prerrogativa de escolher se a causa que lhe é confiada deve correr de modo 100% digital ou não. Assim, se há oposição do advogado de quaisquer das partes, as audiências e sustentações devem ser presenciais, independentemente da vontade do julgador.
Além disso, ainda quanto à atualização da legislação federal, a sociedade deve estabelecer, de forma clara e inequívoca, que as prerrogativas da advocacia prevalecem sobre os procedimentos dos tribunais, não cabendo que a organização interna das cortes limitem o acesso da advocacia.
O segundo eixo deve ser na reestruturação do próprio sistema de prerrogativas da OAB. Da mesma forma que o sistema assistencial da Ordem é financiado, o sistema de prerrogativas deve estar na pauta do dia, com estruturação e capacitação de mecanismos e procuradores de prerrogativas para atender de forma eficiente as demandas que apontam violações da advocacia.
O terceiro eixo está nos bancos das escolas de direito. Dali sairão advogados, delegados, juízes, promotores e demais servidores públicos, que vão lidar com as prerrogativas da advocacia diariamente. O desconhecimento é geral e a aplicação no intuito de anulá-la é uma realidade. O futuro da advocacia passa pelos cursos de direito, que precisam também se adequar ao novo contexto social.
A trama que está a se desenvolver é aquela prevista pelo açougueiro de Shakespeare: "a primeira coisa a fazer é matar todos os advogados". Desse modo, é a cidadania a maior prejudicada, violando-se os direitos comezinhos da Constituição da República. É necessário o resgate do que está na Constituição de 1988. A advocacia é indispensável e inviolável, e o todo o sistema democrático deve agir para assim garantir.
*Joaquim Pedro de Medeiros Rodrigues é advogado criminalista, mestre em direito constitucional pelo IDP
Saiba Mais
Gostou da matéria? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê a sua opinião! O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores pelo e-mail sredat.df@dabr.com.br