Por Marco Aurélio de Carvalho — Dizem que tem lei que não pega no Brasil, mas quando a norma é favorável aos pobres, parece que até a Constituição sofre para pegar. Talvez, haja uma vontade implícita de que a lei sirva apenas para pegá-los. A justiça sempre foi privilégio que vem de berço. Negros e mulheres não teriam sequer direitos por serem negros e mulheres. Pessoas pobres não teriam como lutar por elas judicialmente por não possuírem condições de contratar "bons advogados".
Havia quem lamentasse a situação, mas a única resposta concreta e estrutural do Estado brasileiro só veio em 1988: a inclusão na Constituição da Defensoria Pública como instituição essencial à justiça. Todos os estados e a União passaram a ser obrigados a estruturar as suas Defensorias, para que ninguém se sentisse excluído da justiça.
Restava um grave problema: o maior violador de direitos de pessoas pobres é o Estado, que é o responsável por prender, construir presídios, fornecer saúde, educação, água, demarcar terras proteger crianças e mulheres. Como a instituição que garante a justiça aos pobres poderia ser subordinada ao Poder Executivo?
A Defensoria Pública precisava de autonomia para ser efetiva, mas isso só ocorreria se houvesse real prioridade para a inclusão social. Em 2004, quando finalmente o Brasil caminhava rumo à saída do Mapa da Fome, a decisão foi tomada. Com a Emenda Constitucional 45/2004, o primeiro governo Lula tomou uma das medidas mais importantes para o futuro das pessoas de baixa renda no Brasil. O acesso à justiça cresceu como nunca.
Porém, a maior parte das comarcas continuava sem a implantação da Defensoria Pública e o trabalho dos(as) defensores(as) ainda era tratado como menos importante que o dos demais atores do sistema de justiça, seja pela quantidade de profissionais, seja pela remuneração paga. Quando uma localidade não tem defensores(as) ou eles(as) são poucos(as) e pior remunerados(as) que outras carreiras, continua-se a restringir a qualidade do acesso à justiça a quem pode "pagar bons advogados".
Nova decisão política corajosa em favor dos pobres veio em 2014, no governo Dilma, com a Emenda Constitucional 80 que definitivamente estabeleceu: a Defensoria é tão importante para o país quanto o Judiciário e o MP. É obrigatório ter defensores(as) em quantidade correta em todas as comarcas do Brasil. O prazo dado aos Estados para que se organizassem e se adaptassem à nova realidade, entendendo que a justiça dos pobres não poderia mais ser relegada a segundo plano foi grande: 10 anos.
Alguns estados se destacaram como o Maranhão, de Flávio Dino, o Piauí, de Wellington Dias e o Rio Grande Norte, de Fátima Bezerra, nos quais avançou-se muito na interiorização dos serviços e garantiu-se o tratamento isonômico entre todas as carreiras do sistema de justiça.
Essa é a tendência em todo o país.
Quando falamos em isonomia, falamos apenas em subsídios, ou seja, salário básico. Nada além do preconceito contra os pobres explicarem a resistência em pagá-los de forma justa aos defensores. Mas, ninguém tem direito a simetria em relação a parcelas imorais que outros inventaram para si. As Defensorias, agora autônomas, precisam ter muita responsabilidade e ser fiscalizadas de perto na gestão dos seus recursos. Não são e não podem ser geridas de forma corporativa.
Hoje, é difícil a existência de algum julgamento de grande repercussão no STF que não tenha participação da Defensoria Pública. É assim ao tratarmos da atuação policial nas favelas, do direito à vacina, da demarcação de terras indígenas ou quilombolas, da assistência à família de Marielle Franco e até do combate aos abusos da Lava-Jato. Os dados da Defensoria Pública foram fundamentais para o reconhecimento da presunção de inocência, ao demonstrar que a justiça não era mais privilégio de ricos.
O terceiro governo Lula inaugurou mais uma estrutura inédita: a Secretaria de Acesso à Justiça. O novo órgão terá um grande desafio e indica que não há outra alternativa para um país mais justo. É a hora de investir na Defensoria Pública. É uma nova ideia de justiça, em que finalmente aqueles que sempre foram colocados de fora estarão no centro. Esse é o caminho para onde aponta o governo federal.
*Advogado e coordenador do Grupo Prerrogativas
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