Por Ibaneis Rocha* — Embora nunca tenha sido o direito penal minha área de atuação, não resisto ao impulso de apresentar uma contribuição ao debate que se formou em torno da recente aprovação, por expressivo número de senadores, do projeto de lei acabando com a saída temporária de presos condenados em datas comemorativas e feriados, a conhecida "saidinha".
Como homem público, e cidadão antes de tudo, preocupo-me com a velocidade com o que o tema logo chegou à Mesa, ainda sob o impacto do assassinato de um policial militar em Belo Horizonte por um beneficiário desse sistema.
Condenável sob todos os aspectos, o crime, sem sombra de dúvida, precisa ser punido com todo o rigor; porém, como tem sido recorrente nos últimos tempos, nossa legislação, inclusive a Penal, sujeita-se à repercussão dos fatos ocorridos.
Coerente com posicionamento que sempre defendi enquanto dirigente da Ordem dos Advogados do Brasil, a criminalidade violenta em nosso país precisa ser mais profundamente estudada e discutida, principalmente ante o perigo da ramificação do crime organizado em aparelhos do Estado.
Pouco se sabe de planos voltados para a sua prevenção, as variáveis prováveis de cada tipo de delito, a insegurança objetiva e subjetiva etc.
Também são pouquíssimos os que se ocupam em investigar com visão preventiva o fato da delinquência urbana em si mesmo, enquanto os comunicadores sociais e os políticos se concentram na projeção midiática do fato e operam com algumas estatísticas pouco confiáveis e bastante inúteis para efeitos preventivos.
Afinal, se para prevenir o delito é fundamental conhecê-lo, quem não o conhece não tem a mínima condição de estabelecer qualquer tipo de política preventiva.
Não canso de lembrar de uma certa vez, quando uma rebelião de presos era transmitida ao vivo pelos meios de comunicação, o nosso memorável jurista Evandro Lins e Silva saiu-se com essa: espantoso, mesmo, é que os detentos enjaulados em condições sub-humanas não estejam realizando mais motins país afora.
Evandro Lins era um humanista, sempre achou equivocada a política penitenciária em vigor e gostava também de dizer que melhor faria o governo se gastasse dinheiro construindo escolas, universidades, não presídios.
Os dados estão aí: o Brasil possui uma população de 650 mil presos em celas físicas, quando o sistema atual tem capacidade para receber pouco mais de 300 mil. O que sobra é amontoado em celas na maioria fétidas, sujeitas à disseminação de doenças e, o que é pior, de mais violência.
Do outro lado dos muros das prisões, uma sociedade acuada pela escalada da violência urbana prefere imaginar que lugar de bandido é na cadeia, como se fossem frouxas as 117 leis penais especiais e os 1.770 crimes tipificados de que dispomos, até onde me lembro.
Não obstante, continua acesa, em muitos círculos do Congresso, a ideia de redução da maioridade penal, que na prática significa transformar menino em delinquente e sujeitá-lo à crueldade das prisões. Nada mais autoritário.
Na situação de carências de nosso país, o que a juventude precisa é de amparo, de oportunidade, de educação, e não de medidas que visem puni-la. Sem falar de outras formas de endurecimento.
Há muito a fazer. Além de buscarmos a fundo as raízes da criminalidade, educar ou reeducar o presidiário é uma forma de inclusão, contribui para a criação de uma nova personalidade.
Ao lado disso, os apenados possuem o direito ao trabalho, que tem finalidade educativa e produtiva. Sob todos os aspectos, precisamos promover uma verdadeira revolução nesse campo, uma mobilização forte no sentido de abolirmos a pena privativa de liberdade de determinados crimes e uma reformulação completa no sistema prisional do país.
A alocução que prega a reclusão como forma de "ressocialização" de criminosos ultrapassa a raiz do fingimento tolerável. No Brasil, ultrapassa o ridículo. Cabe a nós mantermos vivo o desejo altruísta de Justiça, o desejo de fazer do mundo da sociedade um espelho do mundo da essência, pois o homem não pode viver sem a sociedade; e, sem o homem, não há sociedade.
A situação só será resolvida com todos à mesa — os órgãos de execução penal, o Ministério Público, o Poder Judiciário, a Defensoria Pública, a Ordem dos Advogados do Brasil etc — de modo a que o verdadeiro Estado Democrático de Direito possa garantir o cumprimento dos princípios para todos os brasileiros, principalmente em relação à dignidade humana, e não simplesmente exercer a violência legítima, oficializada.
No Brasil, o princípio da dignidade da pessoa humana está na base de todos os direitos constitucionais consagrados: sejam direitos e liberdades tradicionais (art. 5º); direitos de participação política (art. 14); direitos sociais (art. 6º); direitos dos trabalhadores (art. 7º), bem como direitos às prestações sociais (art. 203).
Na prática, porém, o abismo social ainda é profundo, separando pobres de ricos e levando o país a níveis de violência inaceitáveis. Felizmente, a questão ainda não está encerrada.
*Governador do Distrito Federal, advogado, ex-presidente da OAB-DF