Tecnologia

Artigo: Inteligência artificial em pauta

O Senado noticiou que o Projeto de Lei (PL) 2.338/2023, um substitutivo aos Projetos de Lei 5.051/2019, 21/2020 e 5.051/2021, proposto em 4 de maio de 2023 e mais conhecido como o "Marco Legal da Inteligência Artificial", deve ser votado ainda no primeiro semestre de 2024

Por Isabela Braga Pompilio* e Monalisa de Oliveira Morais Medeiros* — O Senado noticiou que o Projeto de Lei (PL) 2.338/2023, um substitutivo aos Projetos de Lei 5.051/2019, 21/2020 e 5.051/2021, proposto em 4 de maio de 2023 e mais conhecido como o "Marco Legal da Inteligência Artificial", deve ser votado ainda no primeiro semestre de 2024. Assim, inflamará os já constantes debates sobre a necessidade de regulamentação da matéria, de forma a trazer estabilidade, previsibilidade e segurança, tanto econômica como jurídica, nas atividades que envolvem inovação.

Sob a perspectiva jurídica, é inegável que as expectativas giram em torno da elaboração de um texto convergente com as legislações já em vigor, em especial a Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/1996), o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD - Lei nº 13.709/2018), visto que a manipulação de algoritmos pressupõe o uso de uma quantidade massiva de dados, muitos deles pessoais e protegidos por direitos de propriedade intelectual ou industrial.

Não bastasse, é imprescindível que o texto final também preveja a necessidade de observância de todos os direitos fundamentais constitucionalmente definidos, bem como o equilíbrio entre tal necessidade de proteção de direitos e a inovação que, sem dúvidas, é imprescindível para o avanço científico e tecnológico no Brasil.

Mas estaríamos tratando de regulamentação da tecnologia em si ou da sua aplicação?

Há muito se debate se a tecnologia em si seria um direito ou se a sua amplitude e inesgotável dinamicidade impedem essa conceituação, pois, a depender da situação concreta em análise, seria possível fazer uso das legislações específicas já existentes atreladas à hipótese.

Alega-se também que a sua constante e inevitável mutabilidade pode, inclusive, tornar o próprio processo legislativo obsoleto, tendo em vista que, por óbvio, há de se respeitar a processualística para aprovação de leis, sempre permeada de amplo debate envolvendo juristas e especialistas.

Todavia, nossos regramentos são constantemente adaptados em razão das mudanças em nossa sociedade, de modo que essa discrepância existente entre a morosidade do processo legislativo e a velocidade dos avanços tecnológicos, embora seja um desafio, não deve ser um impedimento para o caminhar de sua regulamentação, até porque, globalmente, já se observa movimentação da União Europeia, do Canadá, dos EUA e de outros países no sentido de regulamentar a matéria.

Inclusive, a proposta de regulamentação brasileira segue lógica parecida do "AI Act" da União Europeia, contendo previsão de classificação de risco voltada para eventual proibição ou necessidade de supervisão de um ser humano para uso de determinada aplicação, especialmente no que diz respeito à tomada de decisões.

Já os Estados Unidos, por sua vez, emitiram ordem executiva no final de 2023, com diretrizes destinadas às empresas de tecnologia no sentido de exigir o estabelecimento de padrões e testes de segurança e proteção de dados e privacidade, sendo este o primeiro passo adotado por um dos países que é um dos maiores produtores de tecnologia de IA do mundo.

Mas, afinal, que lição essa postura dos Estados Unidos, de certa forma mais comedida, pode trazer para o Brasil?

Embora o Brasil não seja um grande produtor de tecnologia, é um voraz consumidor, o que desperta outros tantos desafios a serem avaliados por ocasião da regulamentação do tema. De um lado, há o risco de que uma regulamentação severa e sancionadora possa trazer atraso ao avanço dos setores destinados ao desenvolvimento de tecnologias. De outro, em uma regulamentação mais branda há o risco de redução de mão de obra e aumento de desemprego, em razão do alto interesse em consumir tais tecnologias e da possibilidade de substituição ou redução do trabalho humano em determinados setores.

Em razão da complexidade do tema e de todos os desafios que cercam a implementação da regulamentação da IA no Brasil, o plenário do Senado aprovou, em dezembro de 2023, a prorrogação da atuação da Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial (CTIA). Essa comissão foi criada para debater e promover audiências públicas sobre o tema, até abril deste ano, data que coincide com a previsão de votação do PL anunciada pelo relator, Rodrigo Pacheco.

Todavia, ao que parece, a estagnação na tramitação do PL não perdurará por muito tempo, visto que o Congresso já discute, em paralelo, a questão da proibição do uso de deep fake nas eleições municipais de 2024 e novos fatos típicos como a utilização de pornografia na internet, cyberbullying, propagação de fake news e uso indevido de imagem.

Certo é que já se espera que as mais variadas esferas da sociedade civil, por meio de normativos, práticas de soft law e governança, também se antecipem e estabeleçam códigos de conduta e diretrizes internas sobre o uso responsável, transparente e ético do uso da IA, a fim de tornar eficiente a sua aplicação em seus respectivos ramos de atuação, tal como já vem sendo feito pelo Judiciário Brasileiro, Conselho Nacional de Justiça, princípios éticos para o uso da IA em saúde, publicados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), Princípios da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para uso de IA, orientações éticas da União Europeia para IA de confiança, dentre outros exemplos.

Nesse contexto, não há dúvidas que 2024 promete grandes novidades sobre o tema e que a discussão sobre a implementação desse regramento traz grandes desafios, sobretudo em razão da necessidade de estabelecer equilíbrio entre o avanço científico e tecnológico e a criação de políticas públicas de incentivo à pesquisa e à indústria. Tudo isso sem prejuízo da preservação dos direitos fundamentais e de empregos, transparência na forma de utilização e em todo o processo de funcionamento da tecnologia, coibindo discriminações e qualquer tipo de mau uso que possa vir a infringir quaisquer normas constitucionais e infraconstitucionais já vigentes.

*Isabela Braga Pompilio é especialista em direito digital e sócia de TozziniFreire Advogados.

*Monalisa de Oliveira Morais Medeiros é advogada sênior da TozziniFreire Advogados na área de resolução de disputas.

 


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