Artigo

Vladimir Aras: A pena de morte como fracasso da civilização

Os EUA, a Coreia do Sul e o Japão continuam a ser as únicas grandes democracias que ainda aplicam a pena de morte por crimes comuns. Ao lado desses países estão ditaduras e teocracias como China, Irã e Arábia Saudita

Por Vladimir Aras — Professor de Processo Penal na Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro do Ministério Público desde 1993, atualmente no cargo de procurador regional da República em Brasília (MPF)

A asfixia de Kenneth Smith no Alabama neste mês de janeiro reacendeu o debate sobre a pena de morte e suas maneiras de execução. Os métodos inventados ao longo da História encheriam um livro de horrores. Smith foi condenado por participação no homicídio de Elizabeth Sennett, em 1988, e ficou mais de 30 anos no corredor da morte. Cumpriu mais tempo de prisão lá do que cumpriria noutros países por um crime de igual natureza. Depois foi morto por hipóxia. Uma máscara respiratória foi ligada a um cilindro de nitrogênio puro, que o matou. O sentenciado teria agonizado por alguns minutos antes de deixar este mundo. Não se trata aqui de ter pena de assassinos cruéis. Trata-se de não nos igualarmos a eles em desumanidade.

Os Estados Unidos, a Coreia do Sul e o Japão continuam a ser as únicas grandes democracias que ainda aplicam a pena de morte por crimes comuns. Ao lado desses países estão ditaduras e teocracias como China, Irã e Arábia Saudita, num rol que conta ainda com Paquistão, Sudão, Argélia, Tailândia, Egito, Vietnã, Índia e Somália. O Irã costuma executar pessoas por enforcamento, em eventos públicos de "exposição de suplícios", destinados a incutir medo e a manter o controle da população.

Além de moralmente condenável, a pena capital é juridicamente indefensável, por representar uma exceção injustificável ao direito à vida e, ao mesmo tempo, por revelar uma forma de sanção penal que funciona como uma vingança privada pelas mãos de carrascos pagos pelo Estado.

A Constituição de 1988 proíbe a pena capital no Brasil, salvo em caso de guerra declarada. Sendo esta uma cláusula pétrea, não é possível emendar o texto constitucional para aplicá-la em tempo de paz ou a crimes não militares. Somente uma nova Constituição poderia instituir a pena de morte no Brasil. Vendem ilusões os políticos que sustentam a possibilidade de implantar esta espécie de sanção criminal no País. Não é esta nossa tradição; não é este o caminho para solucionar os gravíssimos problemas de segurança e de violência que os cidadãos enfrentam todos os dias.

Se uma emenda constitucional não tem futuro, tampouco seria viável qualquer alternativa com o mesmo propósito, já que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos não permite restabelecer a pena de morte nos Estados que a tenham abolido. Uma lei que viesse a fazê-lo seria inconvencional e inaplicável.

Em 1994, o Brasil ingressou no Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos Referente à Abolição da Pena de Morte. Os Estados Partes neste Protocolo comprometeram-se a não aplicar a pena capital a nenhuma pessoa submetida a sua jurisdição.

Somaram-se a esses tratados, o Segundo Protocolo Opcional à Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, com vista à abolição da Pena de Morte, adotado pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 1989. 

Disso resulta uma impossibilidade geral de recuo nessa evolução, segundo o princípio da proibição do retrocesso(l'effet cliquet), que veda a supressão de direitos humanos já afirmados ou reconhecidos ao longo da História. O caminho da Humanidade é sempre para a frente.

O abandono do uso da pena como instrumento de reabilitação e reinserção social e a só possibilidade de gravíssimos erros judiciários deveriam acender sinal de alerta contra essa forma de punição. Nos Estados Unidos, o Innocence Project tem retirado do corredor da morte dezenas de pessoas condenadas indevidamente, devido a erros de jurados, falsas perícias, advogados ineptos, ou fraudes processuais praticadas pela Polícia ou pelo Ministério Público. Até 2023, 196 réus foram liberados do corredor da morte apenas nos EUA. Desde 1976, quando foi reinstituída a pena capital naquele país, até janeiro de 2024, 1583 pessoas foram executadas, segundo dados do Death Penalty Information Center. Quantos inocentes terão sofrido este destino por ação direta do Estado?

Se tantos erros judiciários irreparáveis ocorrem num dos mais poderosos sistemas de justiça criminal do mundo, calculemos o que pode se passar nos tribunais de países pobres, nos quais imperam a tortura e o desleixo probatório, nos quais técnicas periciais confiáveis não estão disponíveis e noutras plagas onde uma singela e falível prova testemunhal basta para mandar alguém à forca. E estou falando de execuções judiciais, porque as extrajudiciais, os extermínios sumários, sem processo ou julgamento, ocorrem todos os dias aqui e acolá.

Por fraude, perversidade ou erro,um inocente pode ver-se diante da morte por ordem judicial. Se tivéssemos pena capital no Brasil, esse risco também seria meu ou seu. Um mau policial, um promotor temerário, um advogado incompetente ou um juiz venal podem entregar a vida de um inocente às mãos de um verdugo. Isso basta para repudiar a pena capital.

Injeção letal, câmara de gás, lapidação, enforcamento, eletrocussão, fuzilamento e agora asfixia são métodos adotados para execuções judiciais em alguns cantos do mundo. Representam o fracasso da civilização, pelos crimes horrendos que os motivam e pela forma errônea de abordá-los. Para exterminar a vida, a criatividade humana é infinita. Mas a Justiça Criminal não precisa de agulhas, fuzis, cordas, faíscas ou nitrogênio. A Justiça precisa de humanidade, eficiência e legitimidade. Estes são o seu principal oxigênio.

Mais Lidas