Por Luis Felipe Salomão* — O mundo vive uma transformação jamais vista. Há quem defenda a personalidade jurídica para robôs, existe hoje inegável dificuldade para qualificar a responsabilidade civil em acidente com carro não tripulado, ocorrem notícias falsas, trolling e bolhas nas redes sociais. Além disso, os algoritmos, o metaverso e a internet das coisas são alguns exemplos desse fenômeno.
Após a independência americana, as Revoluções Francesa e Industrial, o pós-guerra e as democracias que emergiram daí, vem a contemporânea revolução na era da comunicação. Uma mudança substancial na forma como se compreende o mundo em que vivemos. A pandemia contribuiu para modificar ainda mais esse cenário. Apesar da tragédia, houve aceleração do processo de transformação disruptiva. Essa verdadeira revolução, com a nanotecnologia, a biologia sintética, dentre outros, altera também o sistema de Justiça.
Os novos modelos contratuais, a engenharia genética e os arranjos familiares foram catalisados pela expansão do acesso à internet no início deste século, o que impactou profundamente relações interpessoais, trabalho, negócios, lazer, educação e acesso à informação.
Os smartphones e tablets proporcionam a comunicação em tempo real para a ampla maioria das pessoas, algo inimaginável há 20 anos, época em que os computadores ligados à rede mundial eram inacessíveis para a maior parcela da população.
É bastante intuitivo, portanto, que o Código Civil, o estatuto do cidadão, normativo de todas essas complexas interações, necessite ser ajustado ao momento atual e preparado para as gerações futuras.
No Brasil do Império, diante da influência do Código Civil de Napoleão Bonaparte, houve a tentativa de consolidação pelo gênio Teixeira de Freitas.
Logo veio a República, quando se deu início, em 1899, ao projeto que resultou no primeiro Código Civil (1916), sobressaindo a atuação de Clóvis Beviláqua.
Muitos eventos provocaram reviravoltas na ordem social ao longo do século XX, com destaque para a crise de 1929, deflagrada com a quebra da bolsa de valores de Nova York, e o irrompimento da Segunda Guerra Mundial.
As normas legais estabelecidas para a sociedade de então já não se mostravam adequadas. Como era grande a exigência para atualizar o direito privado, foi instituída comissão em 1969 com tal finalidade, presidida por Miguel Reale, renomado jurista que, poucos anos antes, idealizara a criação de um tribunal para tratar exclusivamente da interpretação da lei federal.
O Superior Tribunal de Justiça surgiu com a Constituição de 1988 e, em janeiro de 2002, foi sancionado o novo Código Civil, em vigor desde 11 de janeiro de 2003.
Assim, Reale esteve presente tanto como regente do Código Civil de 2002, como na ideia de criação do próprio Tribunal que viria a ser o grande intérprete desse diploma legal.
Já são cerca de 50 anos desde a elaboração do primeiro esboço do atual Código Civil de 2002.
A estrutura da sociedade digital não é mais compatível com as regras do modo analógico. Aqueles que idealizaram o atual Código Civil não poderiam prever tantos avanços, que também demandam regulação normativa.
O Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, teve a louvável iniciativa de instituir comissão de célebres juristas para tal mister, composta atualmente por 37 membros. Foram formadas nove subcomissões temáticas — Parte Geral, Obrigações, Responsabilidade Civil e Enriquecimento sem Causa, Contratos, Direito Empresarial, Direito das Coisas, Direito de Família, Direito das Sucessões e Direito Digital —, responsáveis pela elaboração de relatório parcial e posterior consolidação por parte dos relatores-gerais.
O eixo que está orientando os trabalhos é a observância da jurisprudência consolidada, dos enunciados aprovados em jornadas e das posições consensuais na doutrina. A novidade está na proposta de criar livro próprio dedicado ao Direito Digital.
As reuniões deliberativas finais estão previstas para a primeira semana de abril de 2024, com a posterior entrega do anteprojeto ao Parlamento.
A expectativa é de que seja apresentado texto moderno, que corresponda ao anseio por uma legislação civil contemporânea e adaptada às mudanças dos últimos anos, sendo certo que a ampla e notória participação da sociedade galvaniza ainda mais os pilares da democracia brasileira.
*Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Corregedor Nacional de Justiça, presidente da Comissão de Juristas instituída pelo Senado Federal para revisão do Código Civil brasileiro.
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