A advogada Vera Lúcia Santana de Araújo chega ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) fazendo história. É a segunda vez que uma mulher negra ocupa assento na corte que julga as campanhas eleitorais do país.
Verinha, como é carinhosamente chamada pelos amigos, assumiu como ministra substituta para um biênio — até 2026 — podendo ser reconduzida por igual período, depois de figurar duas vezes seguidas na lista tríplice eleita pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Na primeira vez, tinha pouca chance de passar pelo crivo político, para ser nomeada pelo então presidente Jair Bolsonaro. No ano passado, a situação era outra. Militante em defesa da democracia, a advogada tinha agora mais identidade com o Palácio do Planalto.
Tanto assim que seu nome circulou como cotada para as vagas abertas no STF. Baiana de Livramento de Nossa Senhora, Vera Lúcia chegou a Brasília com 18 anos, estudou direito e mergulhou no movimento estudantil. Filha de uma professora, Rosália Celestina Santana de Araújo, sua inspiração de vida, como ela revela nesta entrevista, a advogada encontrou seu caminho na capital e aqui decidiu viver.
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O Brasil viveu uma ameaça à democracia em 8 de janeiro de 2023. Como a senhora, que atuou em movimentos contra a ditadura, viu esse momento do país?
Estava em Brasília naquele 8 de janeiro de 2023, em passeio de carro com uma irmã e minha mãe. Vimos a descida dos manifestantes acompanhados por policiais militares do DF, garantindo a segurança da descida para a Praça dos Três Poderes. Ao chegarmos em casa, ligamos a TV, que já mostrava as cenas inimagináveis. É evidente que tivemos receios sobre a violência exibida, que pudesse transbordar para fissuras institucionais.
Como lidar com as fake news? Hoje já há inclusive manipulação por meio de inteligência artificial. A Justiça Eleitoral está preparada para enfrentar este desafio?
Os desafios impostos pelo uso indevido das tecnologias, inclusive a inteligência artificial, são efetivamente um grande problema para a vida em sociedade, indo desde o aumento de crimes patrimoniais, com os golpes cibernéticos, passando pelas ofensas pessoais em larga escala, digamos assim, culminando com os ataques à democracia. Não temos ainda uma regulamentação que garanta respostas com a celeridade das agressões, mas é dever do Estado a proteção da cidadania exercitada com as eleições.
O presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, avisou que o abuso de tecnologias de inteligência artificial na eleição deste ano levará à cassação e inelegibilidade. Concorda com essa posição?
O processamento judicial somente pode acontecer nos moldes dados pela Constituição Federal e a legislação eleitoral é muito precisa na regulação da propaganda. Temos normas próprias, justiça especializada, então é o regular funcionamento das instituições, do Judiciário, que vai dar resposta a eventuais excessos.
Qual vai ser o maior desafio da Justiça Eleitoral no pleito deste ano?
Certamente será o enfrentamento a abusos na propaganda, com o uso distorcido das tecnologias, incluindo a IA (inteligência artificial). Mas confiamos no controle social e efetividade do sistema da Justiça Eleitoral para impedir que práticas irregulares, até criminosas, comprometam a grandeza democrática da soberania popular.
Como a Justiça Eleitoral terá condições de julgar todos os processos envolvendo corrupção eleitoral que tramitavam na Justiça comum e mudaram de foro por decisão do STF?
O Poder Judiciário brasileiro é muito bem estruturado, com uma magistratura extremamente bem formada, quadros técnicos auxiliares de alto nível, com condições de trabalho adequadas para o processamento dos feitos em todos os ramos. O deslocamento da competência não interfere na apreciação e julgamento na esfera própria, como entendido pelo STF.
Na condição de mulher e ativista do movimento negro, qual contribuição a senhora dará no TSE?
O compromisso maior é com a efetividade do cumprimento da Constituição Federal, a interpretação normativa com a imparcialidade que é da essência da magistratura. Minha formação jurídica traz também um olhar mais alargado para compreender as interseções de gênero e raça na organização da sociedade em todos os campos e isso deve contribuir no debate, na formulação de propostas normativas no âmbito das competências do TSE, exatamente na perspectiva do texto constitucional.
A senhora foi cotada para integrar o STF. Acha que faltam mulheres no Supremo? E negros também?
A constatação destas ausências na composição das carreiras jurídicas é absolutamente incontestável. Basta olhar o sistema da OAB, o Ministério Público, a Defensoria, sem excluir o Judiciário. Essa é uma realidade que não pode ser escamoteada.
Qual é a sua opinião sobre a grande visibilidade dos ministros de tribunais que leva a embates nas ruas. É possível se blindar desse tipo de aborrecimento?
O Brasil dos últimos anos tem revelado um perfil social consideravelmente autoritário nas relações familiares, como mostram os números de feminicídio, crescentemente racista, e os dados revelam alta dos crimes de racismo, e tudo isso se reflete também na relação institucional, com autoridades constituídas. A fúria contra o prédio do STF é prova inconteste deste temerário fenômeno e tudo isso não pode ficar impune.
Acha que sua vez no STF ainda vai chegar?
A modelagem constitucional para a composição do STF é muito explícita quanto aos requisitos e em todas as carreiras jurídicas temos amplo leque de juristas negras à disposição do presidente da República e do Senado Federal.
O Supremo está mais forte do que deveria?
O Supremo está no tamanho dado pela Constituição da República Federativa do Brasil, para a função primeira de guarda da própria Constituição.
Quem ou o que é a sua grande inspiração de vida?
Minha mãe é uma mulher que me inspira muitíssimo. Sua entrega à família, seu amor à educação, sua solidariedade para com os mais necessitados são bastante singulares. Sua capacidade de se superar, de resistir às tantas vicissitudes vividas é incrível!
Sua mãe queria que a senhora fosse médica. Acha que o direito foi um caminho melhor?
Nunca tive dúvida! Costumo dizer que toda família pobre sonha ter uma filha, um filho médico. Não realizei esse desejo de minha mãe, mas sei que ela se felicita por saber de como me realizo trabalhando a partir da formação jurídica que fiz.
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