Cozinheira das boas, era dona Rosa quem preparava as refeições da família, quase sempre observada por David. "Ela até me ensinava, mas, por segurança, só me deixou pegar na panela quando completei 13 anos", recorda- se. Muitos desses experimentos culinários estão catalogados no caderninho. "Não são receitas autorais, mas de família ou repassadas por amigas. Tem muitos pratos peruanos e guatemaltecos, mas também de vários lugares do mundo", ressalta.
O chef lembra que, no dia a dia, os almoços e jantares eram feitos com receitas da Guatemala mesmo. Em ocasiões especiais, porém, eram servidos pratos típicos do Peru. "Minha mãe fazia questão de nos ensinar sobre a história, a cultura e os costumes do país onde nasceu."
Em 1982, o pai de David foi sequestrado pela guerrilha e a família viveu momento de muita aflição. Era chegada a hora de uma nova mudança. O destino? Brasil. "No início da década de 1980, o Nordeste brasileiro estava vivendo sérios problemas de desnutrição das suas crianças. Meu pai veio tentar solucionar esse problema. Ele, inclusive, esteve ao lado de Zilda Arns na fundação da Pastoral da Criança", orgulha-se.
A família ficou estabelecida em Brasília, enquanto Aaron Lechtig rodava o Brasil a trabalho. Em 1986, a matriarca foi acometida por um câncer de pulmão, apesar de nunca ter fumado. "Eu tranquei a faculdade para cuidar da minha mãe. Fiquei com ela até o fim", emociona-se. Como ela não gostava de dar trabalho e para evitar os trâmites com traslado do corpo, dona Rosa pediu para ser enterrada aqui.
"Com a morte da minha mãe, meu pai ficou completamente desnorteado e decidiu que ia se mudar para Moçambique. Eu cursava publicidade na UnB e ele queria mandar as minhas irmãs para os Estados Unidos, mas eu bati o pé e disse que cuidaria delas aqui em Brasília." Os três ficaram em terras candangas, mas, durante um mês do ano, a família voltava a se reunir no Texas, onde o dr. Aaron dava aulas na Universidade de Houston.
As irmãs de David se casaram e se mudaram para os Estados Unidos, enquanto ele terminou a faculdade e foi fazer mestrado em marketing em São Paulo. Quando acabou o curso e sem poder renovar o visto de estudante, David entrou no Ministério da Justiça com o pedido de cidadania, alegando questões humanitárias, já que não tinha identidade com nenhuma pátria. "Hoje, sou mais brasileiro que muita gente que nasceu aqui", diz
A profissão de chef David começou quase por um acaso, apesar de ter crescido com a paixão pela gastronomia. "Ainda não sabia ao certo o que ia fazer da vida. Estava passando pelo Setor Bancário Norte e vi um ponto comercial muito bom abandonado. Tive a ideia de montar um restaurante. E, assim, eu e o meu companheiro abrimos, em 1993, o Sancho Pança, um self service que existe até hoje, mas que já não nos pertence."
Com a moda do tex mex chegando ao Brasil e tantas idas a Houston, o chef teve a ideia de, em 2003, abrir o El Paso na 404 Sul. Hoje, são três casas. "Teve uma época que chegamos a ter oito restaurantes. Por questão de qualidade de vida, porém, ficamos apenas com o El Paso." O restaurante virou em tex mex na cidade, mas, mais uma vez, David viu uma oportunidade de inovar. Com a culinária peruana invadindo o mundo, incluiu no cardápio pratos típicos do seu país natal.
Com a coluna, ele compartilha as receitas de dois deles, retiradas do caderninho da mãe: o aji de gallina e os alfajores. O doce, tão conhecido na Argentina, nesse caso, é preparado ao estilo chiclayano. "A receita foi elaborada por minha avó e passada em manuscrito para a minha mãe. Para adaptar ao clima tropical brasileiro, acrescentei uma bola de sorvete. É um sucesso no restaurante."
No ano passado, o pai de David morreu em Lima e o filho também ficou ao seu lado até o fim. Hoje, em todos os natais, ele, as irmãs e os sobrinhos se reúnem nos Estados Unidos, onde ainda moram. O caderninho de receitas sempre acompanha David na viagem. Dele, são retiradas todas as receitas da ceia. Assim, mesmo depois de mais de 30 anos, a matriarca continua a unir a família.