
Recordes de calor, fenômenos meteorológicos dignos do apocalipse, doenças infecciosas emergentes, florestas no chão, espécies extintas. O planeta está fora dos eixos e, mais do que diagnosticar problemas, o foco deve ser a solução. É o que defende um relatório do Instituto de Meio Ambiente e Segurança Humana da Universidade das Nações Unidas (UNU-EHS) lançado hoje. O documento propõe cinco mudanças radicais na forma em que a humanidade se relaciona com a Terra (veja quadro), sem as quais, garantem os especialistas, pode não haver ponto de retorno.
- Urticária: ciência descobre fator de risco para evolução crônica
- Grávidas correm riscos por cortes de verbas das agências internacionais
"A sociedade está em uma encruzilhada", definiu Shen Xiaomeng, diretora da UNU-EHS, em uma coletiva de imprensa. "Por anos, cientistas nos alertaram sobre os danos que estamos causando ao nosso planeta e como pará-los. Mas não estamos tomando medidas significativas. Cada vez mais, vemos o perigo à frente, mas continuamos caminhando em direção a ele. Em muitos casos, vemos o abismo, sabemos como nos virar e, ainda assim, continuamos caminhando confiantemente em direção a ele. Por quê?", questionou.
Os autores do novo relatório — Riscos de Desastres Interconectados de 2025 — destacam que "muitas das soluções de hoje são correções superficiais" e que, "para criar mudanças duradouras, precisamos questionar as estruturas e mentalidades sociais que perpetuam esses desafios". Com base em exemplos reais, como o da cidade japonesa de Kamikatsu, que atingiu uma taxa de reciclagem de 80%, os especialistas sustentam que é possível alcançar metas ambiciosas de sustentabilidade e conservação.
Descartes
O lixo, lembra o relatório da UNU-EHS, é um dos grandes desafios da sustentabilidade. Somente de descartes domésticos, são 2 bilhões de toneladas por ano, o suficiente para dar a volta pela linha do equador 25 vezes. Os autores do documento sugerem a reformulação do conceito de resíduo e a mudança para uma economia circular que priorize a reutilização. O lítio, por exemplo, é um metal usado em baterias para itens recarregáveis e consumidos em abundância, embora pouco reutilizado. Com isso, as reservas estão estimadas para esgotarem nos próximos 25 anos. Ao mesmo tempo, 75% do material que já foi usado ficará sem destino.
O que os especialistas da ONU propõem é a chamada teoria da mudança profunda (ToDC), que mergulha nas raízes dos problemas globais e responde à pergunta feita por Shen Xiaomeng. Se existe consciência sobre os desafios da sustentabilidade e já se sabe o que fazer, é preciso identificar as estruturas e suposições que permitem sua persistência.
Caitlyn Eberle, uma das principais autoras do relatório, exemplifica: quando está tão poluído com resíduos plásticos que gera inundações desastrosas, as pessoas podem criticar o sistema de gerenciamento de resíduos e pedir mais reciclagem. "No entanto, a Teoria da Mudança Profunda vai mais além: primeiro, identifica as estruturas que permitem que os resíduos se acumulem, como itens de uso único ou sistemas de produção em massa, e, então, mergulha mais fundo nas suposições que levaram à criação desses sistemas e que incentivam as pessoas a mantê-los funcionando, como acreditar que 'novo é melhor'."
A mudança na mentalidade levou os moradores de Kamikatsu a engajar em feiras de trocas de roupas, em um país conhecido por descartar, muitas vezes, eletrodomésticos funcionais só porque foram lançadas versões mais modernas. A taxa de reciclagem da cidade ultrapassa quatro vezes à do Japão.
Questionamento
Eberle insiste: não basta mandar para reciclagem. É preciso evitar o desperdício. "A sociedade não pode sair da crise do plástico sem questionar por que tanto lixo plástico é produzido em primeiro lugar", diz. "Nosso relatório mostra que muitas das ações que tomamos, por mais bem-intencionadas que sejam, não funcionarão enquanto houver um sistema inteiro trabalhando contra nós. Precisamos ir mais fundo, imaginar o mundo em que queremos viver e mudar as estruturas para corresponder a essa visão."
Outro exemplo apresentado pelos autores do relatório da ONU é o da geoengenharia solar — desenvolvimento de tecnologias como pulverizar aerossóis na estratosfera para refletir de volta ao espaço a luz do Sol e, assim, reduzir as temperaturas da Terra. Embora muitos vejam nesse tipo de estratégia a solução para as mudanças climáticas, os especialistas da UNU-EHS destacam que, além de não contemplar a raiz do aquecimento global, que é o uso desmedido de combustíveis fósseis, a abordagem pode ter impactos imprevisíveis nos padrões climáticos em todo o mundo.
"Abordar as consequências negativas das ações humanas (aquecimento global), em vez das ações em si (queima de combustíveis fósseis), é uma correção superficial", sustenta Shen Xiaomeng. Os autores chamam pessoas comuns e tomadores de decisões a atacar o cerne dos problemas, e não apenas recorrer a paliativos. Um exemplo que fornecem é o do Rio Kissimmee, no estado norte-americano da Flórida. Na década de 1960, ele foi canalizado, secando cerca de 160 quilômetros quadrados de pântanos e levando a um declínio maciço de espécies. Em vez de combater as inundações, a estratégia piorou o problema. Recentemente, porém, foi restaurado. Espécies pantaneiras retornaram e, agora, as planícies armazenam bilhões de galões de água, ajudando a prevenir enchentes.
"A mudança pode ser desconfortável, mas voltar atrás não resolverá os desafios de um mundo em rápida evolução", comentou Zita Sebesvari, outra autora principal do relatório. "Este relatório não é apenas sobre evitar desastres — é sobre se libertar da mentalidade de meramente mitigar danos. Nós nos limitamos quando focamos apenas em prevenir o pior, em vez de lutar pelo melhor. Ao abordar as causas raiz dos problemas, promover a cooperação global e acreditar em nosso poder coletivo, podemos moldar um mundo onde as gerações futuras não apenas sobrevivam, mas prosperem."
Os cinco mandamentos
- Repensar o desperdício: O relatório pede uma reformulação do conceito de resíduo e uma mudança para uma economia circular que priorize durabilidade, reparo e reutilização. Número: 2 bilhões de toneladas de lixo doméstico são produzidas anualmente.
- Realinhar-se com a natureza: A humanidade deve parar de se ver como separada e superior à natureza. Número: 95% da Terra já foi alterada por atividades humanas.
- Reconsiderar a responsabilidade: O mundo é um lar compartilhado por mais de 8 bilhões de pessoas, mas os recursos e oportunidades são distribuídos de forma desigual. Número: 75% das perdas relativas de renda devido às mudanças climáticas são sentidas pela metade mais pobre da população, apesar de ser responsável por apenas 12% das emissões de gases de efeito estufa.
- Reimaginar o futuro: O pensamento de curto prazo domina a tomada de decisões, mas as pessoas vivas hoje determinam as condições para os trilhões de pessoas que ainda estão por nascer. Número: 6,75 trilhões é a previsão de nascimentos nos próximos 50 mil anos.
- Redefinir valor: Mais riqueza global não equivale a mais prosperidade e bem-estar globais. Número: 10% é a proporção da população global que possui 76% de toda a riqueza do mundo.
Março: segundo mês mais quente da história
Com a média de 14,06°C, março de 2025 foi apenas 0,08°C mais frio que o recorde registrado no mesmo mês do ano passado, destacou o programa europeu de observação climática Copernicus. As temperaturas permaneceram em níveis historicamente elevados prolongando uma onda planetária de calor de quase dois anos.
Os dois episódios anteriores ocorreram durante um momento intenso do fenômeno El Niño, enquanto 2025 registra o fenômeno La Niña, a fase oposta do ciclo, sinônimo de uma influência de resfriamento. Na Europa, foi o mês de março mais quente já registrado, segundo o boletim mensal do observatório climático.
No conjunto do planeta, este foi o segundo março mais quente nos registros do Copernicus, o que confirma uma sequência mensal de calor recorde ou quase recorde iniciada em julho de 2023. Desde então, cada mês foi pelo menos 1,5ºC mais quente do que a média antes da revolução industrial, quando a humanidade começou a queimar carvão, petróleo e gás em larga escala.
Eventos
A temperatura de março ficou 1,6ºC acima da era pré-industrial, prolongando um clima tão extremo que os cientistas ainda tentam encontrar uma explicação. "Que ainda estejamos 1,6ºC acima da era pré-industrial é realmente notável", afirmou Friederike Otto, especialista do Instituto Grantham de Mudança Climática do Imperial College de Londres à agência France-Presse. "Estamos firmemente nas mãos da mudança climática provocada pelos humanos". Os especialistas alertam que cada fração de grau de aquecimento global aumenta a intensidade e frequência de eventos climáticos extremos, como ondas de calor, chuvas fortes e secas.
O programa Copernicus utiliza bilhões de medições de satélites, navios, aviões e estações climáticas para fazer seus cálculos. Os primeiros registros datam de 1940, mas outras fontes de informação climática permitem aos cientistas ampliar as conclusões com o uso de evidências muito anteriores.
Segundo o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), o mundo está a caminho de superar de forma duradoura o limite de 1,5°C no início da década de 2030. Ou até mesmo antes, segundo estudos recentes. Alguns cientistas já alertaram que o período atual pode ser o mais quente na Terra nos últimos 125 mil anos.
Saiba Mais