
Silencioso e invisível, um dos impactos mais devastadores da crise climática na saúde infantojuvenil não é medido por problemas respiratórios, infecções nem choque térmico. Estudos revelam que os poluentes atmosféricos e os extremos de temperatura alteram o neurodesenvolvimento, desde a fase intrauterina, comprometendo, a longo prazo, o aprendizado, a cognição e a sanidade mental. Os mesmos prejuízos podem afetar o cérebro de crianças expostas à insegurança alimentar, outro efeito colateral de um mundo cada vez mais insalubre.
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“Os poluentes inalados são recebidos pelo epitélio nasal e chegam ao cérebro pelo nervo olfatório, que está conectado ao bulbo olfatório, um receptor encostado no hipocampo. Essa é uma importante área do cérebro, que controla, entre outras coisas, humor e memória”, descreve Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. O patologista, que também é membro da Academia Brasileira de Ciências, pesquisa há décadas a associação entre ambiente e saúde e é autor de diversos estudos sobre o tema.
Saldiva destaca que crianças geradas em ambientes poluídos podem apresentar atraso no desenvolvimento cognitivo e dificuldade de aprendizado. “Também têm uma chance maior de desenvolver déficit de atenção e hiperatividade. A exposição à poluição também está associada ao envelhecimento cerebral, por isso, em idosos, tem relação com um risco maior de doença de Alzheimer”, diz. Segundo o cientista, a exposição aos poluentes atmosféricos prejudicam o desenvolvimento do feto tanto quanto se a mãe fumasse cinco cigarros por dia.
Mecanismos
Um artigo de revisão publicado no Jornal de Pediatria, da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), explorou os impactos da crise climática no neurodesenvolvimento e explica alguns dos mecanismos em potencial da associação. Os autores, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e do Instituto do Cérebro de Porto Alegre (InsCer) observam que, na gestação, o estresse das vias inflamatórias afetam a barreira que protege a placenta, permitindo que substâncias tóxicas, como ferro, cobre, chumbo e carbono negro (produzido pela queima de combustíveis fósseis, como petróleo e gás natural) cheguem aos tecidos fetais.
Segundo o artigo, partículas poluentes do tipo PM 2,5 — emitidas por veículos, indústrias, incêndios florestais e queima de combustíveis fósseis — desencadeiam um processo inflamatório que danifica os neurônios e importantes estruturas do cérebro. “Esse mecanismo estaria associado a médio prazo ao transtorno do déficit de atenção (TDAH) e posteriormente à doença de Alzheimer.” Outra via apontada pelos pesquisadores é a alteração da microbiota intestinal por agentes tóxicos. “Estudos sugerem que depressão, ansiedade, autismo e TDAH podem estar associados à disbiose da microbiota.”
Os danos cerebrais causados pela inflamação desencadeada pelos poluentes continuam a afetar as crianças após o nascimento. “Adolescentes expostos à poluição do ar e a temperaturas extremas podem apresentar alterações estruturais no cérebro, especialmente na substância branca, que desempenha um papel fundamental na conectividade neural e no processamento de informações”, afirma o neurologista Maciel Pontes, do Hospital de Base de Brasília. “Além disso, há indícios de que viver em áreas com maior poluição e exposição a eventos climáticos extremos pode contribuir para dificuldades na regulação emocional e para o aumento dos sintomas depressivos nessa fase da vida.”
Conexões
Os extremos de temperatura também afetam o neurodesenvolvimento e as conexões entre as células cerebrais, de acordo com dois estudos recentes publicados por pesquisadores da Espanha e da Holanda. “Sabemos que o cérebro em desenvolvimento de fetos e crianças é particularmente suscetível a exposições ambientais, e há evidências preliminares de que a exposição ao frio e ao calor pode afetar o bem-estar mental e o desempenho cognitivo em crianças e adolescentes”, diz Mònica Guxens, coautora dos artigos e pesquisadora do Instituto de Saúde Global de Barcelona (ISGlobal) e do Centro Médico Universitário Erasmus.
Os estudos foram feitos com dados de 2,6 mil crianças de 9 a 12 anos de Roterdã, na Holanda. A análise de tomografias e ressonâncias magnéticas, correlacionadas à temperatura às quais as mães e os bebês foram expostos até os 3 anos, revelou que o frio e o calor excessivos afetam a substância branca do cérebro. Os efeitos na cognição e na saúde mental mostraram-se duradouros.
“Os extremos de temperatura podem afetar a maturação da substância branca do cérebro, responsável pela conectividade entre diferentes áreas cerebrais”, explica o neurologista Maciel Pontes. “Uma maturação mais lenta dessa estrutura pode comprometer a eficiência da comunicação neural, afetando o raciocínio, a memória e a saúde mental na infância e adolescência”, diz.
Cortisol
O médico ressalta que também há evidências de que temperaturas extremas têm potencial de afetar a qualidade do sono, ativar respostas inflamatórias no organismo e aumentar a produção de cortisol, hormônio relacionado ao estresse. “Esses fatores podem, a longo prazo, contribuir para dificuldades cognitivas e maior vulnerabilidade a transtornos como ansiedade e depressão.” Os estudos do ISGlobal e do Centro Médico Universitário Erasmus ressaltaram a lógica perversa da desigualdade: sem acesso a medidas de proteção, as crianças mais pobres também foram as mais vulneráveis.
Outra consequência da crise climática, enchentes também podem afetar a saúde mental, lembra o patologista Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da USP. Um estudo conduzido por ele com dados brasileiros, que será publicado na revista Nature GeoChemistry, mostra uma correlação entre inundações e impactos na saúde mental que pode durar por muitos meses. “Em uma enchente a pessoa perde a casa, o carro, a geladeira, perde tudo. Isso é traduzido em questões da saúde mental”, diz.
TRÊS PERGUNTAS PARA Ana Cláudia Pires, neurologista do Hospital Anchieta em Brasília
Como a crise climática afeta o neurodesenvolvimento?
De diversas maneiras, algumas imediatas e outras de longo prazo. Tanto a exposição precoce a temperaturas extremas quanto a poluição ambiental podem comprometer o desenvolvimento cerebral. Além disso, a poluição atmosférica – agravada pelas mudanças climáticas – pode gerar inflamação no cérebro e impactar funções cognitivas essenciais, aumentando o risco de transtornos como TDAH, ansiedade e depressão. Outra preocupação é o impacto indireto da crise climática. Crianças em situação de vulnerabilidade socioeconômica são as mais afetadas, pois muitas vezes vivem em áreas com maior exposição a riscos climáticos e menos acesso a recursos de proteção. Isso pode aumentar o estresse infantil, podendo desencadear problemas emocionais e cognitivos.
Os extremos climáticos podem impactar o neurodesenvolvimento?
Tanto o frio intenso durante a gestação e os primeiros anos de vida quanto o calor excessivo na primeira infância podem desencadear processos inflamatórios no organismo, sendo associados a alterações na microestrutura da substância branca do cérebro, uma região essencial para a conectividade neural e o desenvolvimento cognitivo. Isso pode potencialmente prejudicar seu amadurecimento, com impacto na cognição e na saúde mental na adolescência. Temperaturas extremas também podem comprometer a qualidade do sono infantil, essencial para a consolidação da memória e para o desenvolvimento cognitivo.
Quais os mecanismos por trás dessas associações?
Os mecanismos envolvidos parecem ser multifatoriais. Um dos principais fatores é o aumento na liberação de cortisol. Esse hormônio do estresse, quando cronicamente elevado, pode afetar o neurodesenvolvimento, interferindo na mielinização dos neurônios e na conectividade cerebral. Essas descobertas reforçam a necessidade de medidas de mitigação, como políticas para garantir ambientes térmicos adequados e programas que protejam o neurodesenvolvimento infantil frente às mudanças climáticas.
Leia amanhã: O adoecimento respiratório de crianças e adolescentes provocado pela crise climática
Saiba Mais
Três perguntas para Ana Cláudia Pires Carvalho, neurologista do Hospital Anchieta, em Brasília, membro da Academia Brasileira de Neurologia (ABN)
Como a crise climática afeta o neurodesenvolvimento?
De diversas maneiras, algumas imediatas e outras de longo prazo. Tanto a exposição precoce a temperaturas extremas quanto a poluição ambiental podem comprometer o desenvolvimento cerebral. Além disso, a poluição atmosférica – agravada pelas mudanças climáticas – pode gerar inflamação no cérebro e impactar funções cognitivas essenciais, aumentando o risco de transtornos como TDAH, ansiedade e depressão. Outra preocupação é o impacto indireto da crise climática. Crianças em situação de vulnerabilidade socioeconômica são as mais afetadas, pois muitas vezes vivem em áreas com maior exposição a riscos climáticos e menos acesso a recursos de proteção. Isso pode aumentar o estresse infantil, podendo desencadear problemas emocionais e cognitivos.
Os extremos climáticos podem impactar o neurodesenvolvimento?
Tanto o frio intenso durante a gestação e os primeiros anos de vida quanto o calor excessivo na primeira infância podem desencadear processos inflamatórios no organismo, sendo associados a alterações na microestrutura da substância branca do cérebro, uma região essencial para a conectividade neural e o desenvolvimento cognitivo. Isso pode potencialmente prejudicar seu amadurecimento, com impacto na cognição e na saúde mental na adolescência. Temperaturas extremas também podem comprometer a qualidade do sono infantil, essencial para a consolidação da memória e para o desenvolvimento cognitivo.
Quais os mecanismos por trás dessas associações?
Os mecanismos envolvidos parecem ser multifatoriais. Um dos principais fatores é o aumento na liberação de cortisol. Esse hormônio do estresse, quando cronicamente elevado, pode afetar o neurodesenvolvimento, interferindo na mielinização dos neurônios e na conectividade cerebral. Essas descobertas reforçam a necessidade de medidas de mitigação, como políticas para garantir ambientes térmicos adequados e programas que protejam o neurodesenvolvimento infantil frente às mudanças climáticas.