Com mais de 13,6 bilhões de doses de vacina para covid-19 aplicadas desde abril de 2021, a doença já não assusta como no auge da pandemia, quando foram registrados quase 15 milhões de mortes a mais no mundo do que o esperado para o período. Embora o vírus Sars-CoV-2 continue circulando, a mortalidade, que chegou a 104 mil na 24ª semana de 2021, foi de 472 nos últimos sete dias de novembro de 2024. Hoje, não é a infecção aguda que preocupa tanto, mas os efeitos de longo prazo que, em uma estimativa conservadora, afetam até 10% dos pacientes.
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No segundo dia da série sobre os cinco anos de circulação do Sars-CoV-2, especialistas explicam a chamada covid longa, definida como sintomas que persistem por três meses ou mais após a fase aguda. Já foram listadas mais de 100 manifestações crônicas da doença, e as principais, e sobre as quais existe consenso, são fadiga, falta de ar, dor e comprometimento cognitivo (a "névoa cerebral"). Também há relatos de danos cardiovasculares, associados à infecção prolongada. Qualquer pessoa pode ser afetada, embora o risco seja menor entre os vacinados.
Cinco anos depois de o Sars-CoV-2 entrar em circulação, o conhecimento da covid longa avançou, com uma compreensão maior não só sobre os sintomas, mas sobre os mecanismos da condição. Porém, ainda não se sabe qual a melhor abordagem terapêutica — existem estudos, mas ainda limitados.
Ensaios
"A falta de consenso sobre os termos, definições e resultados dos ensaios clínicos para covid longa dificulta o envolvimento da indústria nos ensaios clínicos", acredita Ziyad Al-Aly, epidemiologista do Instituto de Saúde Pública da Universidade de Washington, em Saint Louis. "É urgentemente necessário construir consenso sobre esses parâmetros — para aplicações práticas que incluem cuidados clínicos, epidemiologia e vigilância, ensaios clínicos e pesquisas em serviços de saúde", diz.
Segundo Al-Aly, já se sabe, por outras infecções, como a pandemia de gripe de 1918, os surtos de poliomielite e os casos de contágio pelo vírus Epstein-Barr que novas sequelas, algumas incapacitantes, podem ocorrer décadas mais tarde. "É incerto se isso também ocorrerá com a covid-19, o que destaca a necessidade de estudos para caracterizar a trajetória dos pacientes por um longo tempo."
Coração
Um dos órgãos afetados pela inflamação persistente é o coração. Pacientes de covid longa podem sofrer arritmias, miocardite, trombose, infarto e morte súbita. "Em geral, estão em maior risco pacientes com mais de 60 anos, hipertensos não controlados, acima do peso, diabéticos, tabagistas, sedentários e com sistema imunológico comprometido", descreve Flávio Cure, cardiologista responsável pelo serviço de Cardio-oncologia do Copa Star, no Rio de Janeiro.
Conforme o médico, há evidências de que a vacina reduz o risco de covid longa. "Pessoas vacinadas que contraem covid-19 têm menos probabilidade de desenvolver sintomas persistentes, incluindo problemas cardiovasculares. Reduzindo a gravidade da infecção, as vacinas podem diminuir a resposta inflamatória exacerbada que impacta o coração", explica.
Para compreender melhor a relação entre covid longa e sistema cardiovascular, pesquisadores da Universidade de Tbilisi, na Geórgia, fizeram uma revisão de 11 grandes estudos que, no total, envolveram 5,8 milhões de pessoas. Apresentado no Congresso Mundial de Cardiologia, o estudo destaca que pessoas com sintomas prolongados da infecção têm um risco significativamente maior de apresentar problemas como dor no peito, falta de ar, palpitações e fadiga. Também são mais propensas a exibir marcadores elevados de risco cardiovascular em exames de imagem e testes diagnósticos.
Médicos
"A covid-19 é mais do que uma simples doença respiratória — é uma síndrome que pode afetar o coração", destaca Joanna Lee, autora principal do estudo. "Os médicos devem estar cientes de que podem existir complicações cardíacas e investigar mais detalhadamente se um paciente se queixar desses sintomas, mesmo muito tempo após ter contraído a covid", aconselha.
Nos 11 estudos consultados, quase 450 mil pessoas que tiveram covid sofreram complicações cardiovasculares. Entre os pacientes da forma prolongada da doença, a taxa desses problemas foi duas vezes e meia maior, em comparação ao grupo de controle. Embora o objetivo do estudo não tenha sido pesquisar os mecanismos biológicos da associação, Joanna Lee diz que a inflamação crônica desempenha um importante papel.
"Esforços coordenados entre prestadores de cuidados de saúde primários, equipes de emergência e cardiologistas poderiam ajudar na detecção precoce e na mitigação de complicações cardíacas entre pacientes com covid de longa duração", acredita Lee.
Quatro perguntas para Maciel Pontes, neurologista no Hospital de Base do Distrito Federal
Uma das grandes queixas de pacientes que sofrem de covid longa é a confusão mental. Porém, diversos outros sintomas e sequelas da infecção pelo Sars-CoV-2 podem comprometer o cérebro. Em entrevista ao Correio, o neurologista Maciel Pontes, do Hospital de Base do Distrito Federal, explica as principais complicações da condição e diz que, em alguns casos, elas podem se tornar crônicas, especialmente em pacientes que tiveram complicações graves, como encefalite
Na fase aguda da infecção, quais os principais riscos neurológicos?
Os riscos incluem condições graves como encefalite, que é a inflamação do cérebro, acidentes vasculares cerebrais (AVC) associados ao aumento da coagulação sanguínea; síndrome de Guillain-Barré, uma condição autoimune que pode levar à paralisia, além de convulsões ou agravamento de epilepsias preexistentes. Sintomas mais leves, mas igualmente importantes, como anosmia e ageusia (perda de olfato e paladar), também são frequentes devido à inflamação do sistema nervoso periférico.
Quais os sintomas neurológicos da covid longa que já estão estabelecidos?
No contexto da covid longa, estudos confirmaram que diversos sintomas neurológicos estão definitivamente associados à infecção. Entre eles, estão a fadiga crônica e a chamada "névoa mental", que envolvem disfunção cognitiva, além de alterações de memória, dificuldade de concentração e distúrbios do sono, como insônia. Cefaleias persistentes e problemas de saúde mental, incluindo ansiedade, depressão e alterações de humor, também foram identificados como consequências diretas da infecção prolongada, muitas vezes associadas ao impacto do vírus no sistema nervoso central e ao estresse físico e emocional gerado pela doença. Além disso, o brain fog pode ser uma sequela, sendo uma das queixas mais citadas por pessoas que tiveram a doença, seja de forma leve ou mais grave. Trata-se de um estado de confusão, esquecimento, dificuldade de concentração e pouca clareza mental. É uma descrição do que acontece quando o cérebro não consegue funcionar adequadamente.
Esses danos podem se tornar crônicos ou há expectativa que desapareçam com o passar dos anos?
Quanto à evolução dos danos neurológicos relacionados à covid longa, ainda há incertezas. No entanto, sabe-se que alguns sintomas, como fadiga e névoa mental, podem melhorar com o passar do tempo, especialmente quando o paciente recebe acompanhamento médico adequado e participa de programas de reabilitação. Contudo, há casos em que os sintomas podem se tornar crônicos, principalmente em pacientes que enfrentaram complicações graves, como encefalite ou AVC, durante a fase aguda da infecção. As pesquisas continuam investigando se os danos causados pela inflamação e pelas alterações vasculares provocadas pelo vírus serão completamente reversíveis ou se poderão deixar sequelas duradouras.
De forma geral, o que a pandemia ensinou aos sistemas de saúde?
Ficou evidente a relevância de uma vigilância epidemiológica robusta para detectar precocemente surtos e evitar crises globais. Além disso, o desenvolvimento rápido de vacinas destacou a importância da ciência e da cooperação internacional. A infraestrutura de saúde foi colocada em foco, evidenciando a necessidade de maior investimento em hospitais, leitos de UTI e tecnologias médicas. Outro avanço significativo foi a popularização da telemedicina, que se tornou essencial para garantir acesso ao atendimento durante períodos de restrição. A pandemia também reforçou a importância da educação em saúde pública, mostrando como medidas preventivas podem salvar vidas. (PO)
Palavra de especialista - Fenômeno diferenciado
A covid longa é comumente marcada por uma constelação de sintomas experimentados dias a semanas após a cura da infecção inicial, incluindo fadiga, confusão mental, incapacidade de fazer exercícios e oscilações violentas na frequência cardíaca. Existem mais de 50 sintomas diferentes, portanto, definitivamente não é um fenômeno igual para todos os pacientes. Para aqueles com hiperatividade imunológica, os anti-histamínicos podem ser úteis, enquanto aqueles com confusão mental podem se beneficiar de terapia, por exemplo. Por enquanto, evitar a covid longa significa evitar a infecção e ser vacinado contra o vírus. Para pessoas com covid longa, não é tarde demais para buscar cuidados médicos. Sabemos um pouco mais agora sobre a condição, e os pacientes não precisam sofrer sozinhos.
Jeanette P. Brown, professora da Escola de Medicina da Universidade de Utah, nos Estados Unidos