Todos os anos, até 650 mil pessoas morrem por doenças associadas à influenza. A vacina contra a gripe sazonal, recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é a maneira mais segura de prevenir a doença, mas a eficácia ainda não é tão alta — em torno de 60%, com amplas variações individuais. Em um estudo publicado na revista Science, pesquisadores da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, demonstram que a genética pode explicar a diferença nas respostas ao imunizante, além de apresentar uma nova plataforma da substância que melhorou a proteção contra diversos subtipos da gripe.
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O modelo foi testado em animais e em organoides (tecidos cultivados em laboratório que reproduzem a função de um órgão) de amígdalas humanas com sucesso. Os cientistas também demonstraram que a vacina pode aumentar substancialmente a resposta dos anticorpos à gripe aviária — embora a transmissão entre humanos ainda não tenha sido relatada, há temor de que o vírus sofra mutações que tornem essa possibilidade real, abrindo caminho para uma nova pandemia.
De forma geral, a vacina é composta por antígenos com características do patógeno para que, uma vez em contato com o vírus ou a bactéria, o organismo o reconheça, ativando a resposta imunológica. O sucesso de um imunizante depende da habilidade das proteínas produzidas pelas células imunitárias de se “encaixar” seletivamente no microrganismo-alvo, como em um quebra-cabeças.
Ganchos
A estrutura do vírus da gripe consiste em uma série de moléculas em forma de gancho — a hemaglutinina — que se fixa nas células das vias respiratórias e nos pulmões. A vacina padrão contra influenza contém uma mistura de quatro “ganchos”, um para cada versão mais comumente circulante. Porém, em algumas pessoas a eficácia pode ser tão baixa quanto 19% porque esses indivíduos não desenvolvem anticorpos suficientes para um ou mais subtipos.
A equipe de Stanford, liderada pelo professor de microbiologia e imunologia Mark Davis, descobriu porque isso acontece e encontrou uma forma de forçar o sistema imunológico a responder contra todos os subtipos, de forma mais robusta. Em um comunicado à imprensa, Davis afirmou que “isso poderia fazer uma enorme diferença na capacidade da vacina de evitar que soframos consequências das infecções por gripe”. A OMS estima que, anualmente, haja 1 bilhão de casos no mundo, sendo que de 3 milhões a 5 milhões são graves.
Em laboratório, os cientistas construíram uma matriz molecular contendo os quatro antígenos da influenza, juntos. Na vacina padrão, eles são administrados na forma de partículas separadas, dentro da mesma substância. Ao unir quimicamente os tipos de hemaglutinina, os pesquisadores conseguiram forçar o sistema imunológico a reconhecer todos eles, criando anticorpos capazes de combatê-los.
O modelo ainda precisa ser testado em humanos, inclusive quanto à segurança. Mas os pesquisadores estão otimistas. Para Davis, a vacina poderá, inclusive, evitar uma pandemia de gripe aviária. “A gripe aviária poderá, muito provavelmente, gerar a nossa próxima pandemia viral.”
Diferenças
Individualmente, a eficácia da gripe varia muito. “Depende de diversos fatores, sendo a idade um dos principais. Em pessoas idosas, a resposta imunológica pode ser menor. Além disso, pessoas com problemas de imunidade, como aqueles em tratamento para câncer, que utilizam medicamentos que afetam o sistema imunológico ou que fazem uso de imunobiológicos, também apresentam maior dificuldade em responder à vacina”, destaca Ralcyon Teixeira, infectologista do Hospital Sírio-Libanês.
No estudo, os cientistas da Universidade de Stanford também evidenciam um papel da genética no comportamento defensivo do organismo. “O artigo destaca que as diferenças genéticas, particularmente em uma classe de moléculas codificadas pelos genes HLA, desempenham um papel crítico na variabilidade da resposta imunológica à vacina contra influenza”, descreve Manuel Palácios, infectologista do Centro de Segurança Assistencial (CSA) do Hospital Anchieta. “Assim, indivíduos com alelos (versões do gene que estão no mesmo local do cromossomo) dos genes HLA específicos podem ser mais propensos a responder de forma eficaz a determinados subtipos de influenza, enquanto outros permanecem mais vulneráveis a infecções”, esclarece.
Hospedeiro
“Hoje, as vacinas são feitas direcionadas para eficiência contra as cepas mais prevalentes do último ano. Mas fatores genéticos do hospedeiro, embora menos estudados, também são importantes”, destaca Guilherme Yamamoto, responsável por inovação genômica e bioinformática na Dasa. Além das moléculas codificadas pelos genes HLA, como apontado no estudo, o geneticista diz que a diferença entre sexos tem influência na resposta: “É mais baixa em pacientes masculinos, possivelmente associada aos níveis de testosterona”.
Segundo Yamamoto, cientistas tentam vacinas mais eficientes, independentemente do perfil genético, capazes de evitar os casos graves da gripe e até mesmo novas pandemias. “Uma estratégia em desenvolvimento é atacar a parte comum da proteína dos diferentes subtipos de vírus para que a vacina seja mais universal do ponto de vista da cepa viral”, diz. “A outra, descrita na Science, é tentar criar proteínas agrupadas (chamadas de quiméricas por ter várias partes de diferentes vírus) que, assim, tanto poderiam funcionar melhor para os diferentes tipos de vírus, mas também para os diferentes tipos de genes nos hospedeiros."
Hoje, existem estratégias para aumentar a proteção da vacina. "Para pacientes de alto risco, é possível administrar duas doses com um intervalo de três meses entre elas, recomendação que já é reconhecida no Brasil", explica Ralcyon Teixeira, infectologista do Hospital Sírio Libanês. "Outra alternativa é o uso de uma vacina com maior concentração de vírus, indicada exclusivamente para pessoas com mais de 80 anos ou para aqueles com problemas de imunidade. Essa vacina, disponível apenas no setor privado, oferece uma resposta imunológica maior e é reservada para esses grupos específicos. Em situações epidemiológicas de risco, como surtos ou aumento da circulação do vírus influenza fora da temporada de gripe (outono e inverno), uma segunda dose no mesmo ano pode ser considerada para grupos vulneráveis, incluindo idosos, imunodeprimidos e pacientes com doenças crônicas."
Palavra de especialista
"Os pesquisadores da Universidade de Stanford identificaram que a baixa eficácia da vacina contra a gripe pode ser atribuída ao “viés de subtipo”, no qual a resposta imunológica se concentra predominantemente em uma única cepa presente na vacina, deixando o indivíduo vulnerável a outras cepas. Para superar esse desafio, os cientistas desenvolveram uma técnica que acopla antígenos de múltiplas cepas do vírus influenza. Essa abordagem visa aumentar a ajuda das células T CD4+ (células de defesa do nosso organismo), promovendo uma resposta imunológica robusta contra todas as cepas incluídas na formulação vacinal. Em modelos pré-clínicos, essa formulação mostrou induzir uma resposta de anticorpos mais ampla em comparação com a vacina inativada sazonal tradicional. Portanto, estratégias como o acoplamento de antígenos heterólogos podem potencialmente aumentar a proteção oferecida pelas vacinas contra a gripe, abordando limitações das formulações atuais e ampliando a resposta imunológica contra múltiplas cepas do vírus. Mas, ainda são necessários mais estudos de vida real para avaliar a efetividade da nova vacina",
Henrique Lacerda, infectologista do Hospital Brasília, da Dasa
Três perguntas para Leandro Machado, professor de Medicina da Universidade Católica de Brasília
A eficácia da vacina depende de quais fatores?
De diversos fatores, incluindo a correspondência entre as cepas do vírus na vacina e as que estão circulando, o histórico de exposição prévia ao vírus, a idade, o estado de saúde da pessoa e o momento da vacinação. O artigo publicado na revista Science destaca que a genética é um fator importante, influenciando o viés de resposta imunológica a determinados subtipos de vírus. Por exemplo, a expressão de moléculas MHC-II, que variam geneticamente entre os indivíduos, desempenha um papel essencial na apresentação de antígenos e na ativação de células T.
É possível aumentar a proteção da vacina da gripe?
Sim, é possível. O artigo propõe uma solução inovadora: o acoplamento de antígenos de diferentes subtipos de influenza. Essa estratégia aumenta a diversidade de células T recrutadas, ampliando a resposta imunológica e reduzindo o viés de subtipo. Além disso, novas tecnologias, como nanopartículas e plataformas multivalentes, também têm o potencial de melhorar a eficácia, tornando a vacina mais universal e capaz de oferecer proteção contra cepas sazonais e emergentes. A estratégia de acoplar antígenos de diferentes subtipos é promissora, pois amplia a resposta imunológica, tanto em termos de anticorpos quanto de células T. Essa ideia, bem fundamentada e criativa, tem potencial para revolucionar como enfrentamos a influenza e outras doenças respiratórias.
Qual a avaliação o senhor faz do artigo da Universidade de Stanford?
De forma geral, o artigo é uma contribuição importante para a imunologia e aponta caminhos que podem transformar as vacinas contra influenza, um problema global há décadas. Ele combina rigor científico com uma proposta ousada e prática, mostrando que há alternativas viáveis para superar as limitações atuais. O próximo passo será traduzir essas descobertas para o contexto clínico, garantindo que essa inovação se torne acessível e eficiente para a população.